O
Código Civil de 2002 introduziu algumas mudanças no regime de proteção dos bens
do casal. Uma delas foi a extensão para o aval da necessidade de outorga uxória
ou marital, já exigida para a fiança, por exemplo.
Esse
instituto é a autorização do cônjuge para atos civis do parceiro que tenham
implicações significativas no patrimônio do casal. Conheça a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre esse dispositivo.
Fiança em locação
O
caso mais recorrente na jurisprudência é a fiança dada a locatário por um dos
cônjuges sem a anuência do outro. Em regra, para a jurisprudência majoritária
do STJ, esses casos geram nulidade plena da garantia. É o que retrata a Súmula
332, de 2008: “A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a
ineficácia total da garantia.”
Esse
entendimento já era aplicado na vigência do Código Civil de 1916, de que é
exemplo o Agravo de Instrumento 2.798, julgado em maio de 1990. O STJ tem
seguido essa linha desde então, como no Recurso Especial 1.165.837, julgado em
2011.
Boa-fé
No
entanto, nesse recurso, como em outros mais recentemente, o STJ vem discutindo
se a má-fé na garantia viciada pode relativizar a nulidade. Nesse caso, o
fiador havia se declarado divorciado, quando na verdade era casado. Na cobrança
do aluguel afiançado, seu cônjuge alegou nulidade da garantia, porque feita sem
sua outorga.
O
juiz entendeu que o fiador agiu de má-fé e a simples anulação por inteiro da
fiança beneficiaria o garantidor, que teria agido com manifesta deslealdade
contratual. Por isso, manteve a execução, reservando apenas o direito de meação
do cônjuge.
O
Tribunal de Justiça manteve a decisão. No STJ, a ministra Laurita Vaz afirmou
que mudar as conclusões da corte local sobre a má-fé do fiador, para afastar
parcialmente o vício na fiança, exigiria reexame de provas, o que não poderia
ser feito pelo Tribunal.
Mas
a Quinta Turma, por maioria, decidiu de forma contrária. Para os ministros, o
ato do fiador poderia ser ilícito e até mesmo criminoso, mas não afastava a
condição de validade do ato jurídico. Assim, sem a outorga, a fiança prestada
pelo cônjuge não poderia ter qualquer eficácia jurídica. Caberia ainda ao
locatário exigir e conferir os documentos que embasavam o negócio jurídico.
Junto e separado
A
Sexta Turma, porém, já relativizou a nulidade da fiança em caso idêntico,
julgado no Recurso Especial 1.095.441. O fiador declarou-se separado, mas vivia
em união estável. Na execução da garantia do aluguel, sua companheira alegou a
nulidade da fiança porque não contava com sua anuência.
Para
o ministro Og Fernandes, nesse caso, seria impossível aplicar a súmula, porque
fazê-lo iria contrariar as conclusões fáticas das instâncias ordinárias e
beneficiar o fiador que agiu com falta da verdade. Além disso, ele destacou que
a meação da companheira foi garantida nas decisões impugnadas, o que afastava
qualquer hipótese de contrariedade à lei.
Legitimidade
Em
qualquer caso, o STJ entende que somente o cônjuge que não deu a outorga pode
alegar a nulidade da fiança. Ou seja: o fiador que não buscou a anuência do
cônjuge não pode alegar sua falta para eximir-se da obrigação. É o que foi
decidido nos Recursos Especiais 772.419 e 749.999, por exemplo.
No
Recurso Especial 361.630, o STJ também entendeu que o cônjuge que não deu a
autorização tem legitimidade ativa para a ação rescisória, mesmo quando não
tenha integrado a ação original.
Referindo-se
ainda ao Código de 1916, a decisão da ministra Laurita Vaz afirma que a meeira
de bem penhorado para garantir execução de aluguel tem interesse jurídico – e
não apenas econômico – na desconstituição do julgado.
Autorização dispensada
Por
outro lado, no Recurso Especial 1.061.373, o STJ entendeu ser irrelevante a
ausência de outorga conjugal no caso de o aluguel afiançado ter beneficiado a
unidade familiar.
De
modo similar, no Agravo de Instrumento 1.236.291, o STJ afirmou que, sob a
vigência do Código Civil de 1916, a garantia cambial dispensa a outorga. Assim,
termo de confissão de dívida e promissória vinculada firmados antes do novo
código são garantidas por aval e não fiança, dispensando a autorização.
Ainda
no regime do Código de 16, o STJ mitigou a exigência da autorização conjugal no
Recurso Especial 900.255. Nesse caso, o Tribunal entendeu que a fiança
concedida sem a participação da esposa do garantidor deveria ser validada.
Isso
porque a cônjuge do fiador encontrava-se em local incerto e desconhecido havia
mais de 13 anos. No recurso, a esposa, que havia abandonado o lar em 1982,
questionava a penhora do imóvel – que resguardara sua meação.
A
execução do aluguel em atraso teve início em 1995 e a declaração de ausência
veio em 1998, após três anos da penhora e arrematação do imóvel pertencente ao
casal, por terceiro de boa-fé e nos autos de execução do contrato de locação
garantido pela fiança.
Solidariedade
O
STJ também já entendeu que, se as instâncias ordinárias interpretaram que o
contrato não trata de garantia, mas de obrigação solidária assumida pelo
cônjuge, não há falar em outorga.
No
Recurso Especial 1.196.639, o STJ afirmou ser impertinente a discussão sobre a
autorização, já que o tribunal local negou a existência de fiança. Conforme
afirmou a corte ordinária, a solidariedade a que se obrigou o cônjuge da
recorrente dizia respeito a obrigação da vida civil sem qualquer restrição na
lei, podendo ser praticada livremente por qualquer dos cônjuges.
Fiança e outorga
Para
o STJ, a fiança deve ser ainda expressa e escrita, sendo sua interpretação
restrita. Por isso, no Recurso Especial 1.038.774, o Tribunal entendeu que a
mera assinatura do cônjuge no contrato não implica sua solidariedade.
Ela
alegava ter assinado o ajuste apenas para fim de outorga uxória e não para se
responsabilizar também pela dívida. Seu nome nem mesmo constava na cláusula
contratual especificamente referente aos fiadores. O ministro Napoleão Nunes
Maia Filho, que relatou o caso, citou Sílvio Venosa para esclarecer que o
consentimento marital não se confunde com fiança conjunta.
“O
cônjuge pode autorizar a fiança. Preenche-se desse modo a exigência legal, mas
não há fiança de ambos: um cônjuge afiança e o outro simplesmente autoriza, não
se convertendo em fiador”, afirma o doutrinador citado.
“Os
cônjuges podem, por outro lado, afiançar conjuntamente. Assim fazendo, ambos
colocam-se como fiadores. Quando apenas um dos cônjuges é fiador, unicamente
seus bens dentro do regime respectivo podem ser constrangidos. Desse modo,
sendo apenas fiador o marido, com mero assentimento da mulher, os bens
reservados desta, por exemplo, bem como os incomunicáveis, não podem ser atingidos
pela fiança”, conclui o civilista.
O
caso julgado pelo STJ no Recurso Especial 690.401, porém, é inverso. Nele, o
nome do cônjuge constava expressamente na cláusula sobre a fiança, afirmando
que ambos do casal seriam “fiadores e principais pagadores, assumindo
solidariamente entre si e com o locatário o compromisso de bem fielmente
cumprir o presente contrato”.
Testemunho e outorga
De
modo similar, o STJ também entendeu que o cônjuge que apenas assina o contrato
como testemunha não dá outorga conjugal de fiança. No caso analisado no Recurso
Especial 1.185.982, o tribunal local afirmava que a cônjuge não podia alegar
desconhecimento dos termos do contrato que testemunhara, sendo implícita a
autorização para a fiança.
Porém,
para a ministra Nancy Andrighi, a assinatura do cônjuge sobreposta ao campo
destinado às testemunhas instrumentárias do contrato não fazem supor sua
autorização para a fiança do marido. Ela apenas expressaria a regularidade
formal do instrumento particular de locação firmado entre locador e afiançado.
Isso não evidenciaria sua compreensão sobre o alcance da obrigação assumida
pelo marido como fiador.
“A
fiança é um favor prestado a quem assume uma obrigação decorrente de disposição
contratual, de maneira que sempre estará restrita aos encargos expressa e
inequivocamente assumidos pelo fiador. Se houver incerteza quanto a algum
aspecto essencial do pacto fidejussório, como a outorga marital, não é possível
proclamar a eficácia da garantia”, asseverou a relatora.
Separação absoluta
No
Recurso Especial 1.163.074, o STJ definiu qual regime de bens dispensa a
outorga. É que o artigo que trata da autorização marital afirma que ela é
dispensada no caso de separação absoluta, sem esclarecer se em tal caso se
insere tanto a separação de bens consensual quanto a obrigatória, imposta por
lei.
Em
votação unânime, a Terceira Turma entendeu que apenas o regime consensual de
separação atrai a dispensa de outorga. Conforme a decisão, a separação de bens
adotada por livre manifestação da vontade corresponderia a uma antecipação da
liberdade de gestão dos bens de cada um, afastando qualquer expectativa de um
em relação ao patrimônio do outro.
“A
separação de bens, na medida em que faz de cada consorte o senhor absoluto do
destino de seu patrimônio, implica, de igual maneira, a prévia autorização dada
reciprocamente entre os cônjuges, para que cada qual disponha de seus bens como
melhor lhes convier”, explicou na ocasião o ministro Massami Uyeda, hoje
aposentado.
“O
mesmo não ocorre quando o estatuto patrimonial do casamento é o da separação
obrigatória de bens. Nestas hipóteses, a ausência de comunicação patrimonial
não decorre da vontade dos nubentes, ao revés, de imposição legal”, concluiu.
Processos Ag 2798, REsp 1165837, REsp 1095441, REsp
749999, REsp 772419, REsp 361630, REsp 1061373, Ag 1236291, REsp 900255, REsp
1196639, REsp 1038774, REsp 690401, REsp 1163074
Fonte
Âmbito Jurídico