O
artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) permite que, no contrato de
adesão, as cláusulas sejam estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de
produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar
substancialmente o seu conteúdo.
A
regra vale para o contrato de compra e venda feito com construtora para
aquisição de imóvel. Isso pode ser um problema para o consumidor – se este não
conhecer seus direitos e, consequentemente, não souber identificar possíveis
abusos por parte daquela.
Em
razão de problemas de natureza contratual ou do produto, a cada dia aumenta o
número de demandas judiciais envolvendo construtoras. Confira a jurisprudência
do STJ sobre o tema.
Propaganda enganosa
De
acordo com o consultor jurídico do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das
Relações de Consumo (Ibedec), Rodrigo Daniel dos Santos, muitos não sabem que
existe um documento – memorial de incorporação – que descreve todas as
características do imóvel; inclusive detalhes como marca, tipo e modelo do
piso, além da cor da tinta das paredes.
Esse
documento deve ser registrado no cartório antes da venda do imóvel. Com isso,
aquele que estiver interessado em comprá-lo poderá verificar, antes de fazer o
negócio, se todos os itens conferem com o constante no memorial.
O
consultor jurídico mencionou outro aspecto importante: a publicidade veiculada
pelas construtoras faz parte do contrato. “Inclusive, se não houver ressalvas
quanto a projeções artísticas com paisagismo e móveis em áreas comuns, estas
são promessas que integram o contrato de venda.”
Sobre
esse ponto, a Quarta Turma do STJ julgou um caso em que unidades residenciais
do empreendimento denominado Meliá Barra Confort First Class, no Rio de
Janeiro, de mais de R$ 2 milhões cada, foram vendidas como apart hotéis com
serviços (REsp 1.188.442).
Segundo
o relator do recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, “o princípio da
vinculação da publicidade reflete a imposição da transparência e da boa-fé nos
métodos comerciais, na publicidade e nos contratos, de modo que o fornecedor de
produtos ou serviços obriga-se nos exatos termos da publicidade veiculada”.
Atraso
Uma
das queixas mais comuns enfrentadas pelo Judiciário é o atraso na entrega dos
imóveis vendidos na planta. Vários casos já chegaram ao STJ. De acordo com
dados do Ibedec, 95% das obras no Brasil são entregues com atraso. “Todos os
contratos preveem uma cláusula, que reputamos ilegal, de tolerância de 180 dias
na entrega do imóvel”, afirmou Rodrigo Daniel dos Santos.
Em
setembro de 2011, a Terceira Turma do STJ decidiu que o atraso de três anos na
entrega de um imóvel adquirido na planta não configurou dano moral. “A
devolução integral das parcelas pagas, devidamente corrigidas, é suficiente
para indenizar os prejuízos. Não há falar em indenização por dano moral na
espécie”, afirmou o ministro Massami Uyeda, relator do REsp 1.129.881.
O
contrato de compra e venda com a construtora, cujo objeto era um imóvel situado
no Rio de Janeiro, foi celebrado em novembro de 1994, com entrega prevista para
novembro de 1997. A cliente chegou a pagar mais de R$ 114 mil em prestações
durante o tempo em que esperava pela entrega (que nem chegou a acontecer).
Diante
disso, moveu ação de rescisão contratual, cumulada com pedido de devolução
integral das parcelas pagas, bem como indenização por danos moral e material. O
juízo de primeiro grau julgou o pedido procedente, tanto em relação à rescisão,
quanto à devolução das parcelas e ao dano moral – fixado em R$ 24 mil. O
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença, apenas para afastar
a condenação em lucros cessantes.
Dano moral
No
STJ, o ministro Massami Uyeda explicou que o consumidor está autorizado pelo
ordenamento jurídico a buscar a rescisão contratual, bem como a devolução
imediata dos valores pagos. Contudo, o ministro não concordou com as instâncias
ordinárias em relação aos danos morais.
Para
ele, “salvo circunstância excepcional que coloque o contratante em situação de
extraordinária angústia ou humilhação, não há dano moral. Isso porque, o
dissabor inerente à expectativa frustrada decorrente de inadimplemento contratual
se insere no cotidiano das relações comerciais e não implica lesão à honra ou
violação da dignidade humana”.
Prazo para reclamar
De
acordo com Antônio Luiz da Câmara Leal, o prazo de prescrição somente se inicia
com a ciência da violação do direito, não sendo admissível, portanto, que se
tenha como extinta a pretensão antes mesmo desta ciência (Da Prescrição e da
Decadência: Teoria Geral do Direito Civil).
No
julgamento do REsp 903.771, a Terceira Turma proferiu decisão nesse sentido.
Para os ministros, o prazo que o dono do imóvel tem para ingressar em juízo
contra a construtora, por danos relacionados à segurança e solidez da obra,
começa a contar a partir da ciência das falhas construtivas.
O
imóvel adquirido em agosto de 1982 começou a apresentar problemas 17 anos
depois. Em novembro de 2002 (mais de 20 anos após a aquisição), o morador moveu
ação contra a construtora, na qual pediu indenização de danos materiais – visto
que deixara de receber o valor correspondente aos aluguéis durante a reforma do
prédio –, além de danos morais.
O
magistrado de primeiro grau reconheceu a prescrição vintenária da pretensão
indenizatória. O Tribunal de Justiça de Sergipe desconstituiu a sentença, pois
considerou que o prazo só começaria a contar a partir do conhecimento, pelo
dono do imóvel, da fragilidade da obra.
No
recurso especial direcionado ao STJ, a construtora Celi alegou violação ao
artigo 1.245 do Código Civil (CC) de 1916, segundo o qual, “nos contratos de
empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de
materiais e execução responderá, durante cinco anos, pela solidez e segurança
do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo, exceto, quanto a este,
se, não achando firme, preveniu em tempo o dono da obra”.
Garantia
De
acordo com o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do recurso especial,
o prazo de cinco anos do artigo mencionado é de garantia e não de prescrição ou
decadência. Isso quer dizer que, “desde que a fragilidade da obra seja
conhecida nos cinco anos seguintes à sua entrega, possui ele [dono do imóvel],
nos termos da Súmula 194 deste Tribunal, 20 anos para demandar o construtor”.
Entretanto,
o ministro lembrou que existe alternativa à disposição do dono da obra, que
independe de o conhecimento dos problemas de solidez e segurança ter-se dado
nos cinco anos após a entrega: a comprovação da prática de um ilícito
contratual, ou seja, da má execução da obra (artigo 1.056 do CC/16).
“É
inviável aceitar que o dono da obra, diante e no exato momento do conhecimento
da fragilidade desta, seja impedido de veicular pretensão indenizatória em face
de quem, culposamente, tenha ocasionado esta fragilidade”, afirmou Sanseverino.
Juros no pé
Um
assunto que já gerou muita divergência de entendimento entre os membros das
Turmas de direito privado do STJ é a cobrança de juros compensatórios antes da
entrega das chaves do imóvel – os chamados “juros no pé”.
Em
setembro de 2010, a Quarta Turma, em decisão unânime, negou provimento ao
recurso especial interposto pela Queiroz Galvão Empreendimentos, por considerar
que, “em contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção,
descabe a cobrança de juros compensatórios antes da entrega das chaves do
imóvel, porquanto, nesse período, não há capital da construtora mutuado ao
promitente comprador, tampouco utilização do imóvel prometido” (REsp 670.117).
Em
junho de 2012, esse entendimento foi alterado pela Segunda Seção no julgamento
dos embargos de divergência (EREsp 670.117) interpostos pela mesma empresa. Nas
razões do recurso, a construtora alegou que havia decisão da Terceira Turma em
sentido contrário: “Não é abusiva a cláusula do contrato de compra e venda de
imóvel que considera acréscimo no valor das prestações, desde a data da celebração,
como condição para o pagamento parcelado” (REsp 379.941).
O
ministro Antonio Carlos Ferreira, que proferiu o voto vencedor na Segunda
Seção, citou vários precedentes do Tribunal que concluíram pela legalidade de
cláusulas de contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção
que previam a cobrança de juros compensatórios antes da entrega das chaves.
Ele
explicou que, em regra, o pagamento pela compra de um imóvel em fase de
produção deve ser feito à vista. Contudo, o incorporador pode oferecer certo
prazo ao cliente para o pagamento, por meio do parcelamento do valor total, que
pode se estender além do tempo previsto para o término da obra. Para ele, isso
representa um favorecimento financeiro ao comprador.
“Em
tal hipótese, em decorrência dessa convergência de interesses, o incorporador
estará antecipando os recursos que são de responsabilidade do adquirente,
destinados a assegurar o regular andamento do empreendimento”, disse.
Pagamento de aluguéis
Ainda
que a rescisão contratual tenha ocorrido por culpa da construtora (fornecedor),
é devido o pagamento de aluguéis, pelo adquirente (consumidor), em razão do
tempo em que este ocupou o imóvel. Esse foi o entendimento da Quarta Turma no
julgamento do REsp 955.134.
A
dona de uma casa construída pela Só Casas Empreendimentos Imobiliários ajuizou
ação contra a construtora, na qual sustentou que o imóvel teria sido entregue
com atraso de mais de dois anos e com diversos defeitos que o tornaram
impróprio para o uso. A empresa contestou os pedidos da autora e pediu que, em
caso de rescisão contratual, ela fosse condenada a pagar aluguéis relativos ao
período em que ocupou o imóvel.
Em
primeira instância, o contrato foi rescindido e a construtora foi condenada a
restituir os valores recebidos, com correção monetária e juros. Contudo, o
pedido da construtora (quanto aos aluguéis) também foi julgado procedente.
Ambas apelaram e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina reformou em parte a
sentença. Para esse tribunal, somente seriam devidos aluguéis pela adquirente à
vendedora se tivesse partido daquela o descumprimento contratual.
Para
o ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso especial no STJ,
independentemente de quem provocou a rescisão do contrato, é vedado o
enriquecimento sem causa. “O pagamento da verba consubstancia simples
retribuição pelo usufruto do imóvel durante determinado interregno temporal,
rubrica que não se relaciona diretamente com danos decorrentes do rompimento da
avença, mas com a utilização do bem alheio”, afirmou.
Cláusula abusiva
A
Turma adotou outro entendimento importante nesse julgamento. Para os ministros,
é abusiva a cláusula que estipula penalidade ao consumidor no caso de mora ou
inadimplemento contratual, mas isenta o fornecedor em situações de análogo
descumprimento contratual.
O
contrato de compra e venda previa, na hipótese de inadimplemento do consumidor,
imposição de multa moratória, retenção de 5% a título de comissão de corretagem
e de 2% a título de taxa de serviço. Segundo Salomão, “prevendo o contrato a
incidência de multa moratória para o caso de descumprimento contratual por
parte do consumidor, a mesma multa deverá incidir, em reprimenda ao fornecedor,
caso seja deste a mora ou o inadimplemento”.
Ele
mencionou que o artigo 4º do CDC estabelece os objetivos da Política Nacional
das Relações de Consumo, além de princípios que devem ser respeitados, como a
harmonia e o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. “A par
da exigência de que as relações entre consumidores e fornecedores sejam
equilibradas, tem-se também como um direito básico do consumidor a igualdade
nas contratações”.
Tamanho do imóvel
De
acordo com a cartilha do consumidor produzida pelo Ibedec, “embora o
apartamento seja vendido como unidade, o cálculo de seu preço é feito em metros
quadrados, portanto qualquer diferença caracteriza vício e pode ser objeto de
indenização”.
Em
outubro de 2011, a Quarta Turma julgou recurso especial da empresa Paulo
Octávio Investimentos contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, que a condenou ao pagamento de indenização a um casal de clientes pela
diferença de 1,45% na área do apartamento adquirido por eles (REsp 326.125).
Segundo
a ministra Isabel Gallotti, relatora, no caso de venda ad mensuram (quando o
preço é estipulado por medida de extensão), “se as dimensões do imóvel vendido
não correspondem às constantes da escritura de compra e venda, o comprador tem
o direito de exigir a complementação da área, a resolução do contrato ou ainda
o abatimento proporcional do preço”.
Contudo,
ela explicou que existe uma ressalva no Código Civil. “Se a desproporção não
exceder de um vigésimo da área total enunciada, presume-se que a referência às
medidas foi meramente enunciativa, devendo ser tolerada a diferença.” Quanto ao
caso específico, a relatora observou que a diferença entre a área real do
apartamento e a constante dos documentos apresentados pela construtora, de 5%,
estava dentro da variação considerada tolerável pela legislação.
Devolução
“Revela-se
abusiva, por ofensa ao artigo 51, incisos II e IV, do CDC, a cláusula
contratual que determina, em caso de rescisão de promessa de compra e venda de
imóvel, a restituição das parcelas pagas somente ao término da obra”, disse o
ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 997.956.
APL
Incorporações e Construções recorreu ao STJ contra decisão do Tribunal de
Justiça de Santa Catarina (TJSC), o qual considerou ser nula a cláusula
contratual que determinou a devolução das prestações pagas pelo comprador
somente após a conclusão das obras. Além disso, o TJSC aplicou ao caso o artigo
1.096 do CC/16, segundo o qual, "salvo estipulação em contrário, as arras
em dinheiro consideram-se princípio de pagamento. Fora esse caso, devem ser
restituídas, quando o contrato for concluído, ou ficar desfeito".
Segundo
Salomão, relator do recurso especial, o STJ já tem jurisprudência pacífica
sobre o assunto, que é contrária à pretensão da construtora. No julgamento do
REsp 877.980, a Quarta Turma entendeu que a aplicação da cláusula configura
enriquecimento ilícito por parte da incorporadora, visto que ela tem a
possibilidade de revender o imóvel a terceiros e, ao mesmo tempo, obter
vantagem com os valores retidos.
Quanto
à devolução da quantia paga a título de sinal, Salomão afirmou que é direito do
comprador obter sua restituição, se ele não tiver dado causa à rescisão do
contrato.
Fonte
Portal do STJ