A
contratação eletrônica na internet envolve uma verdadeira transformação nas
experiências de consumo, atraindo o consumidor como poder de novidade e
animação de si[1].
Sobretudo
com o aumento do acesso à internet por meio da telefonia celular, o consumidor
está atualmente conectado 24 horas por dia, sendo cada movimento do ambiente
virtual capturado e armazenado em volumosos bancos de dados, perdendo-se o
controle de quais informações estão sendo comercializadas no mercado da
sociedade da informação[2].
Os
indivíduos continuam se isolando e emergindo cada vez mais no ambiente virtual.
O acesso a uma gama extensa de informações introduz uma nova forma de
isolamento, na qual o usuário fica irreversivelmente conectado, o que afeta sua
capacidade crítica[3].
Isso
favorece o desenvolvimento de um vínculo mais intenso e sem intermediários entre
fornecedores e consumidores, os quais são invadidos por mensagens
publicitárias, seja em seus e-mails, seja em sites como Facebook ou YouTube.
Novas formas de propagar as marcas empresariais foram desenvolvidas, a exemplo
do marketing viral, incitando os usuários a compartilhar a mensagem
publicitária para outros usuários ou sites, tal como se estivesse espalhando
uma doença biológica[4].
Surge,
então, a necessidade de uma proteção mais efetiva ao consumidor, num ambiente
desmaterializado e ubíquo, com um fornecedor sem face e capaz de obter
informações sobre o contratante, simplesmente acompanhando sua movimentação na
internet[5].
Não
é por outro motivo que os deveres de informação imputáveis aos fornecedores na
internet são especializados pelo meio, incluindo dados que deverão ser
obrigatoriamente prestados ao consumidor por ocasião da contratação eletrônica
de consumo[6].
O
dever de informar na internet atende, em primeiro lugar, a uma de suas
finalidades básicas no sistema de proteção do consumidor, que é justamente a
prevenção de danos. Da mesma forma, ao menos minimizando a assimetria entre as
partes, permite a reflexão e a formação do consentimento livre e racional do
consumidor sobre suas restrições e riscos[7].
Busca-se,
assim, propiciar um controle sobre as cláusulas abusivas, que, na definição de
Rubén S.Stiglitz, desnaturam o vínculo obrigacional, seja ao limitar ou
suprimir a obrigação do proponente, alterando a equivalência entre as partes,
seja ao favorecer excessiva ou desproporcional a posição contratual do
fornecedor ou mostrar-se incompatível com os princípios gerais tidos como
essenciais em cada ordenamento[8].
É
o caso dos termos e condições de uso das redes sociais e demais ferramentas na
internet, caracterizados, na classificação do professor Antonio Junqueira de
Azevedo, como contratos existenciais, que se contrapõem aos contratos de
lucro[9].
Os
contratos existenciais se fundam na circunstância de ao menos uma das partes
ser uma pessoa natural, visando ao atendimento de suas necessidades
existenciais, enquanto os contratos de lucro envolvem empresas ou
profissionais, havendo uma grande diversidade de efeitos entre ambos, por
exemplo, no tocante à boa-fé, à função social e ao dano moral.
Nos
contratos existenciais que versem sobre consumo, à luz dos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana(artigo 1º, IV, Constituição da
República) e da solidariedade social (artigo 3º, I, Constituição da República),
a incidência da boa-fé e da função social se dará de maneira mais intensa,
traduzindo uma índole protetiva da parte tida como mais frágil.
Descumprindo
a obrigação de clareza imposta pelo artigo 7º, XI do Marco Civil da Internet
(Lei 12.695/14), os sites nem sempre dão o devido destaque aos termos e
condições de uso e à política de privacidade.
Tais
documentos são normalmente alocados em hiperlinks no fim das páginas
eletrônicas, sem qualquer forma de destaque e meios atrativos que despertem a
atenção do consumidor, passando normalmente despercebidos, não obstante sua
importância na determinação da relação entre as partes.
A
partir de um comportamento concludente, o usuário adere, mediante um clique,
aos termos de uso e política de privacidade, que, muitas vezes, fazem com que
abra mão de imagens, fotografias e demais documentos em face do provedor que
administra o site.
O
artigo 8º, parágrafo único da Lei 12.965/2014 estabelece a nulidade, de pleno
direito, das cláusulas que violem a garantia do direito à privacidade e à
liberdade de expressão nas comunicações, em se tratando de condições
indispensáveis ao pleno exercício do direito de acesso à internet.
Da
mesma forma, no contexto da internet das coisas, objetos conectados, como
automóveis e eletrodomésticos, dentre outros, propiciam acesso às informações
dos consumidores em tempo real, incluindo localização, utilização, qualidade de
serviço e eficiência operacional, trazendo novos riscos à privacidade e à
proteção de dados pessoais. Para tanto, o perfil de hábitos dos usuários é
mapeado, de modo a registrar todo o comportamento do indivíduo no dia a dia,
desde seus hábitos de consumo, lazer, saúde e localização, o que necessariamente
deve passar pela observância do artigo 7º, VII e VIII da Lei 12965/2014 (Marco
Civil da Internet no Brasil), que preveem como direitos básicos do usuário,
respectivamente, o não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, salvo
consentimento livre, expresso e informado, bem como a prestação de informações
claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção dos
dados pessoais.
[1] LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal;
ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução de Maria Lucia Machado. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.68: “Consumir era distinguir-se; é cada
vez mais 'jogar', conhecer a pequena alegria de mudar uma peça na configuração
do cenário cotidiano. Assim, o consumo já não é tanto um sistema de comunicação,
uma linguagem de significantes sociais, quanto uma viagem, um processo de
quebra de rotina cotidiano por meio das coisas e dos serviços. Menos mal menor
ou 'negação da vida' que estimulante pitada de aventura, o consumo nos atrai
por si mesmo como poder de novidade e de animação de si. Um pouco como no jogo,
o consumo tende a tornar-se por si mesmo sua própria recompensa”.
[2] CANTO, Rodrigo Eidelvein. A vulnerabilidade dos
consumidores no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
p.23.
[3] CANTO, Rodrigo Eidelvein. A vulnerabilidade...,
op. cit., p.24-25: “Consequentemente, o consumo desenfreado e irrefletido é
favorecido pelos avanços tecnológicos, principalmente quando estamos tratando
de bens digitais que podem ser transferidos diretamente para os mais diversos
dispositivos por meio de downloads. Em se tratando de e-books, e.g., a
Amazon.com desenvolveu o sistema de compra com i-Clique, o qual torna
extremamente rápido o processamento do pedido, utilizando as informações
previamente cadastradas pelo consumidor no site para cobrar no método de
pagamento padrão e enviar o produto ao dispositivo no qual será armazenado
automaticamente. Essas condições influenciam sobremaneira os usuários que
experimentam uma urgência em adquirir diversos bens, conforme é possível ver no
fórum de discussão intitulado 'Help! I need to stop buying books and start
reading', no site da Amazon.com”.
[4] CANTO, Rodrigo Eidelvein. A vulnerabilidade...,
op. cit., p.24.
[5] CANTO, Rodrigo Eidelvein. A vulnerabilidade...,
op. cit., p.25-26.
[6] MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade
civil por acidente de consumo na Internet. 2.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014. p.307.
[7] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor.
5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.510.
[8] STIGLITZ, Ruben. Clausulas abusivas em el
contrato de seguro. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. p.73-74.
[9] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Diálogos com a
doutrina; entrevista. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro,
v.34, abr./jun. 2008. p.304. Para o professor da USP, “os contratos
existenciais têm como uma das partes, ou ambas, as pessoas naturais; essas
pessoas estão visando a sua subsistência. Por equiparação, também podemos
incluir nesse tipo de contrato as pessoas jurídicas sem fins lucrativos. Ora,
as pessoas naturais não são ´descartáveis´ e os juízes têm que atender às suas
necessidades fundamentais; é preciso respeitar o direito à vida, à integridade
física, à saúde, á habitação etc., de forma que cláusulas contratuais que
prejudiquem estes bens possam ser desconsideradas. Já os contratos de lucro são
aqueles entre empresas ou entre profissionais e, inversamente, se essas
entidades ou pessoas são incompetentes, devem ser ´expulsas´, descartadas do
mercado ou da vida profissional. No caso destes contratos de lucro, a
interferência dos juízes perturba o funcionamento do mercado ou o exercício das
profissões; o princípio do pacta sunt servanda tem que ter aí maior força”.
Por
Guilherme Magalhães Martins
Fonte
Consultor Jurídico