sexta-feira, 24 de outubro de 2014

TEMPO PERDIDO EM ATENDIMENTO PODE GERAR INDENIZAÇÃO

Ganha força nos tribunais tese que defende reparação por período gasto na solução de problemas de consumo.

Tempo não é apenas dinheiro. É algo tão valioso, que é finito, inacumulável e irrecuperável. Por isso, o tempo gasto pelo consumidor para resolver problemas com a aquisição de bens e serviços devido a falhas do fornecedor já é considerado um novo tipo de dano e que pode gerar uma indenização. A tese do advogado capixaba Marcos Dessaune sobre o chamado desvio produtivo do consumidor começou a aparecer nas decisões judiciais no fim de 2013. A doutrina dele considera que a perda de tempo do consumidor em razão do mau atendimento não é um mero aborrecimento do dia a dia, como ainda entendem muitos juízes, mas um verdadeiro impacto negativo na vida da pessoa, já que ela é obrigada a utilizar o tempo em que poderia estar trabalhando, com sua família ou no lazer para solucionar problemas gerados pelas empresas.
A ideia de dano temporal já foi mencionada por desembargadores de ao menos quatro tribunais de Justiça do país — de Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul — para derrubar apelações de empresas em causas de consumo como negativa de troca de um produto e espera excessiva numa fila de banco. É o reconhecimento de que, no Brasil, o consumidor enfrenta uma verdadeira via-crúcis até nas mais simples situações.

Demora na solução é um dano temporal
A tese de Dessaune começou a ser elaborada em 2007, quando ele trabalhava em sua monografia de conclusão do curso de Direito, e foi consolidada no livro “Desvio Produtivo do Consumidor” (Editora Revista dos Tribunais), publicado em 2011. A ideia surgiu da percepção do autor de que as pessoas se desviavam de suas atividades para resolver problemas de consumo e que isso gerava grande desgaste.
— Minha formação inicial é em música clássica, mas fiz administração nos Estados Unidos e estudei ouvidoria na União Europeia. Ir para o Direito foi natural. Somando todos esses conhecimentos, criei um Código de Atendimento ao Consumidor em 2007. E ali, em quatro linhas, defini o que é um desvio produtivo e depois desenvolvi. Minha própria experiência mostrou o quanto temos de abrir mão de fazer certas coisas para resolver problemas que não deveriam existir — diz Dessaune.
E como o tempo não é um bem jurídico tutelado na Constituição, como dignidade, honra ou propriedade, Dessaune tentou dar esse passo, destacando sua importância e valor.
— O tempo é finito, inacumulável e irrecuperável. Por isso, é um bem muito valioso, só comparável à saúde, necessária para aproveitá-lo. O tempo não está tutelado na Constituição e talvez, por isso, só agora os tribunais estejam passando a entender que quando o consumidor leva tempo para resolver um problema de consumo ele também sofre um dano temporal.
Para Dessaune, o desvio produtivo é um novo tipo de dano, que não é material nem moral. Apesar disso, os tribunais não estão construindo uma terceira vertente, mas incluindo a perda do tempo como um aspecto do dano moral. Para o advogado, o diferencial de sua tese é o fato de que, até então, não havia trabalhos que constituíssem um raciocínio de que o tempo é um bem jurídico e econômico por ser escasso.
— Há outras teorias mostrando que quando surge um outro tipo de dano, se injusto, ele é indenizável. Minha ideia entra aí. As pessoas querem mais tempo de vida do que têm. Além disso, tempo é dinheiro. O tempo tem de ser aproveitado da melhor maneira possível. Mas as pessoas nem sempre conseguem devido a maus fornecedores. Agora, esse desperdício de tempo sai do mero dissabor para um dano indenizável — destaca o advogado.

Via-crúcis mesmo em casos simples
No TJRJ, o desembargador Fernando Antonio de Almeida já recorreu à tese de Dessaune quatro vezes, desde novembro, para justificar suas decisões sobre espera em fila de banco, negativa de devolução de matrícula como previsto em contrato, celular com defeito e envio de cartão de crédito não solicitado. Para ele, o consumidor perde um tempo enorme para resolver situações que deveriam ser solucionadas rapidamente. Num dos casos decididos por ele, foi cobrada uma taxa de R$ 60 para consertar um aparelho celular de R$ 246 que deveria ter sido trocado devido a um defeito de fábrica, conforme prevê o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Em vez disso, o cidadão teve de gastar tempo e se aborrecer, chegando ao ponto de recorrer à Justiça, para resolver uma questão simples e que não foi criada por ele.
— Sem dúvida, essas situações mostram que há um desvio. Em vez de fazer outras coisas, a pessoa gasta seu tempo para resolver problemas de consumo. Todos passamos por isso porque somos todos consumidores. Uma coisa é solicitar um reembolso já previsto em contrato e isso levar de três a quatro dias. Outra é esperar seis meses e ainda ter de ir à Justiça— ressalta Almeida.
Para o desembargador do TJSP Fábio Podestá, que em decisão proferida em novembro do ano passado também recorreu à tese de Dessaune, a questão temporal se encaixa dentro do dano moral.
— Dessaune sistematizou esse novo dano. É uma derivação de um dano moral. Acredito que daqui para frente essa doutrina passe a ser mais mencionada e conhecida também pela sociedade, para que as pessoas cobrem mais das empresas e elas tenham que se adequar.
Podestá explica que, ao arbitrar o valor de uma indenização por dano moral, leva em consideração três critérios: a capacidade econômica das partes envolvidas, avaliando, por exemplo, se a empresa é de grande ou pequeno porte; a repercussão do dano, até que ponto ele afeta o consumidor; e a intensidade da culpa, como o fornecedor se comportou. Para o desembargador, o desvio produtivo se encaixa no segundo critério, o do sofrimento:
— Um vício, por exemplo, tem de ser reparado, conforme prevê o CDC, que dá um prazo para que isso ocorra. Na prática, no entanto, o consumidor tem de enfrentar uma via-crúcis para resolver uma situação que não foi provocada por ele. Se para as empresas tempo é dinheiro, podemos passar essa ideia para o consumidor.
Dessaune considera que essa via-crúcis ocorre por alguns motivos. O brasileiro não é muito de reclamar, seja por vergonha ou comodismo. Além disso, as condenações por dano moral são sempre arbitradas em quantias irrisórias para as empresas, e isso faz com que maus fornecedores considerem que vale a pena protelar soluções e não atender com qualidade, já que muitos não reclamam e os que se queixam ficam anos no Judiciário e recebem pouco.
Para ilustrar o quanto vale o tempo de um trabalhador, o economista Gilberto Braga, que também é perito do Tribunal de Justiça do Rio, fez alguns cálculos a pedido do GLOBO, mostrando o quanto valem períodos que vão de 30 minutos a 15 dias para quem ganha de um salário mínimo a R$ 25 mil. Embora tal conta não seja feita exatamente dessa forma pelos juízes na hora de arbitrar uma indenização por danos morais, ela serve para se ter uma ideia de como o tempo é literalmente valioso. Meia hora — período gasto com regularidade por consumidores ao contatar um SAC, por exemplo — vale R$ 2,27 para quem ganha mil reais. Já as oito horas de um dia de trabalho valem R$ 181,82 para quem tem um salário de R$ 5 mil. E muitas vezes, na soma dos diversos contatos com uma empresa, se ultrapassa esse período até conseguir a solução de um problema.
Para Braga, a tese de Dessaune talvez possa ser utilizada também em causas que não são apenas consumeristas e que envolvem montantes altos, como compra de imóveis, em que as empresas arrastam a briga com recursos judiciais mesmo quando não têm mais como ganhar a causa. 
— Esse tempo perdido pelo consumidor hoje não é mensurado nesses casos. Talvez, a partir de agora, possa começar a ser. Com isso, o tempo da briga judicial pode ser reduzido — avalia Braga.

Por Andrea Freitas
Fonte Idec – O Globo