É altamente controvertida a questão da
necessidade de obtenção certidões de distribuição de feitos ajuizados contra o
vendedor, por ocasião da compra ou da celebração de contrato envolvendo a
propriedade de um imóvel.
Muitas vezes há exigência, por parte do
tabelião, da apresentação das referidas certidões para a lavratura de escritura
pública que, após o registro, irá transferir da propriedade do imóvel. Por isso
às vezes nos deparamos com a declaração, na escritura pública, de que o
comprador “dispensou” a apresentação das certidões pessoais referentes ao
vendedor, notadamente a certidões de feitos ajuizados no foro de domicílio do
vendedor ou de situação do imóvel.
Situação semelhante ocorre por ocasião da
celebração de qualquer contrato que verse a respeito de propriedade imobiliária,
como, por exemplo, compromisso de compra e venda de imóvel.
Há uma questão prática a ser resolvida: as
certidões pessoais do vendedor devem ser obtidas?
Ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de
fazer algo caso inexista lei que determine ou fundamente a obrigação. É o que
dispõe o art. 5º, II, da Constituição Federal. A luz desse postulado, vamos
verificar, inicialmente, se existe obrigação legal para que essas certidões
sejam apresentadas. Caso a conclusão seja pela existência de norma determinando
essa apresentação, a solução é simples: as certidões devem ser obtidas porque há
norma estabelecendo essa obrigação. Caso contrário, a solução demandará outra
análise, como veremos.
Uma corrente doutrinária sustenta que a necessidade
de obtenção das certidões de feitos ajuizados contra o proprietário do imóvel
decorre da Lei 7.433, de 18 de dezembro
de 1985. Trata-se da norma referente à lavratura de escrituras públicas, aplicável
também a certas hipóteses em que o contrato relativo ao imóvel poderá ser feito
por instrumento particular. Com efeito, o parágrafo 2º do art. 1º da Lei 7.433/85
menciona expressamente a necessidade de apresentação da certidão de feitos
ajuizados, nos seguintes termos:
“Art
1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos
documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os
documentos expressamente determinados nesta Lei.
(...)
Parágrafo
2º - O Tabelião consignará no ato notarial, a apresentação do documento
comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões
fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando dispensada sua transcrição.
(...)”
Contudo,
o inciso IV do art. 1º do regulamento dessa Lei — Decreto 93.240, de 9 de
setembro de 1986 — assim dispõe:
“Art
1º Para a lavratura de atos notariais, relativos a imóveis, serão apresentados
os seguintes documentos e certidões:
(...)
IV -
a certidão de ações reais e pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e a
de ônus reais, expedidas pelo Registro de Imóveis competente, cujo prazo de
validade, para este fim, será de 30 (trinta) dias;
(...)”
A redação do inciso IV parece dar a entender
que a obrigação de apresentação de certidões de feitos ajuizados se limita à ações
que dizem respeito diretamente ao imóvel objeto da escritura pública. Certidões
referentes ao vendedor, mas que não dizem respeito ao imóvel — por exemplo, ação
de cobrança por quantia certa —, não precisariam ser apresentadas. E mais: a
certidão de feitos ajuizados legalmente obrigatória é a expedida pelo cartório
imobiliário e não pelos distribuidores forenses.
Em vista disso, há uma corrente doutrinária
que sustenta a inexistência de obrigação legal de apresentação das certidões
dos feitos ajuizados contra o vendedor, mas apenas a certidão do registrador
imobiliário, que constaria todas as informações referentes ao imóvel e às ações
que dizem respeito ao imóvel. De acordo com essa tese, não deve o tabelião
fazer constar da escritura pública que o comprador “dispensou” a apresentação
das certidões pessoais do vendedor expedida pelos distribuidores forenses,
simplesmente porque elas não seriam obrigatórias.
Vamos admitir que está correta a tese que
restringe o alcance da expressão “feitos ajuizados” constante do parágrafo 2º do
art. 1º da Lei 7.433/85. Partindo desta premissa — inexistência de obrigação
legal de apresentação das certidões dos distribuidores forenses —, devemos
concluir também que essas certidões não devem ser obtidas pelo comprador?
Para responder a essa pergunta, devemos
diferenciar obrigação de ônus.
A toda obrigação corresponde um direito. Assim,
em face das obrigações de pagar quantia certa, de fazer algo, de entregar coisa
determinada etc., existem os direitos de receber a quantia, a prestação ou a
coisa etc. Caso a obrigação não seja cumprida, o titular do direito pode fazer
valer seu direito mediante pedido de tutela judicial, pois a todo direito
material em sentido estrito corresponde um direito processual que o protege. Nesse
caso, o Estado-juiz irá determinar que a obrigação seja cumprida. Isso
significa que o Estado-juiz determinará que o devedor pague a quantia, faça
algo, entregue determinada coisa etc. Caso, ainda assim, a obrigação não seja
cumprida, o Estado-juiz determinará providências executórias, de modo que o
direito ou algo que substitua o direito violado possa existir de fato, no mundo
real.
Essa correspondência entre obrigação e
direito não existe quanto ao ônus. A pessoa que tem o ônus de fazer ou deixar
de fazer algo não pode ser obrigada pelo Estado a fazer ou a deixar de fazer,
exatamente porque não existe um direito de obrigar alguém à prática do ato. A
sanção pelo não desincumbimento do ônus será outra.
Possivelmente o exemplo mais simples de ser
visualizado está no direito processual, referente ao ônus da prova. A legislação
processual estabelece a quem incumbe provar o fato alegado — ônus da prova —,
hipóteses em que fatos não precisam ser provados — inexistência de ônus da
prova —, hipóteses em que a parte contrária deverá fazer a prova — inversão do ônus
da prova —, etc. Toda vez que a lei estabelece possíveis consequências indesejáveis
para a prática de um ato ou para a ausência da prática de um ato, está estabelecendo
uma sanção ou um ônus.
Não pode o juiz obrigar que alguém se
desincumba do ônus. A pessoa que não se desincumbir plenamente do ônus imposto
pela lei sofrerá ou poderá sofrer as consequências jurídicas da ausência da prática
do ato estabelecido. Assim, no exemplo do ônus da prova, a pessoa a quem
incumbe o ônus da prova não poderá ser obrigada a fazer a prova, mas poderá receber
uma decisão desfavorável no processo judicial.
Nas operações imobiliárias há diversas hipóteses
em que ônus são estabelecidos pela legislação, com possíveis consequências para
aquele que não se desincumbir do ônus. Muitas vezes é necessário não apenas
praticar o ato referente ao ônus, mas também, por cautela, produzir algo que
demonstre que o ato foi praticado. São hipóteses em que determinado fato ou ato
jurídico não se encontra registrado na matrícula do imóvel, mas é passível de
atingir terceiro em razão de expressa disposição de lei nesse sentido.
Uma hipótese interessante é o caso da fraude
à execução na hipótese em que há ação em curso capaz de tornar o devedor
insolvente, nos termos do art. 593, II, do Código de Processo Civil.[1] A
legislação estabelece que, configurada essa hipótese, o imóvel cuja propriedade
fora validamente transferida para um terceiro poderá ser penhorado para a
satisfação do credor do vendedor.
A questão da fraude à execução é, até hoje,
altamente controvertida nos tribunais. Há uma súmula do STF a respeito do tema,
uma súmula do STJ em sentido diametralmente oposto, julgamentos díspares por
parte de tribunais estaduais, bem como outra orientação por parte do TST.[2]
Outra hipótese é a aquisição da propriedade
de bem imóvel após a decretação da falência do vendedor, no qual o imóvel
adquirido poderá vir a ser arrecadado para compor massa falida, nos termos do
art. 129, VII, da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.[3]
Há ainda outras hipóteses, como aquisição de
bem em fraude contra credores — arts. 158 e 159 do Código Civil —, de vendedor
com interdição judicialmente decretada — art. 3º, 9º, III e 1.773, todos do Código
Civil —, de bem considerado indisponível — art. 36 da Lei 6.024, de 13 de março
de 1974 —, etc.
Enfim, em diversas hipóteses, a lei
estabelece possíveis consequências indesejáveis para o terceiro adquirente do
imóvel, independente de má-fé ou de registro na matrícula do imóvel. Se a lei
estabelece hipóteses em que o comprador do imóvel pode vir a sofrer consequências
jurídicas decorrentes da não obtenção de certidões expedidas pelos
distribuidores forenses, existe ônus.
Atualmente, há alguns projetos de lei
objetivando positivar, total ou parcialmente, o princípio da vis atractiva do
registro imobiliário. De acordo com esse princípio, deve constar do registro
imobiliário tudo que, direta ou indiretamente, possa afetar o imóvel ou a sua
propriedade. Há corrente na jurisprudência que, total ou parcialmente, acolhe
esse princípio e protege o comprador em situações específicas.
Contudo, enquanto a jurisprudência não
estabelecer de forma unívoca que em nenhuma hipótese ato ou fato não registrado
na matrícula do imóvel poderá atingir terceiros ou não forem alterados todos os
dispositivos legais que preveem essas hipóteses, haverá para o comprador o ônus
de obter as certidões expedidas pelos distribuidores forenses.
[1] “Art. 593. Considera-se
em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: (...) II - quando, ao
tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo
à insolvência; (...)”
[2] Para mais informações a
respeito do tema, vide: SILVA, Bruno Mattos e. Compra de imóveis: aspectos jurídicos,
cautelas devidas, análise de riscos. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
[3] “Art. 129. São
ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento
do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste
fraudar credores: (...) VII – os registros de direitos reais e de transferência
de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação
relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver
havido prenotação anterior. (...)”
Por Bruno Mattos
Fonte Consultor Jurídico