Os dentes, ou melhor, a falta deles, podem, sim, eliminar candidatos de concursos
públicos. Você é bem gordinho? Mede menos de 1,50m ou mais de 2m? Tem tatuagem
visível ao olho comum? Se as respostas são positivas, então, prepare-se: você
pode vencer a difícil etapa da aprovação, mas ter sua contratação negada. Essas
são apenas algumas das exigências questionáveis — e, em alguns casos,
esdrúxulas — que constam de diferentes editais, de Norte a Sul do país, muitas
vezes preparados às pressas por necessidade de preenchimento de quadros. A
polêmica é garantida, e a maioria dos casos acaba mesmo é na Justiça.
Exame ginecológico foi derrubado
Levantamento
de 2010, feito pelo Ministério Público (MP) do Estado do Rio, mostra que os
concursos lideram as reclamações à sua Ouvidoria — 9,12% de 100 mil registros
em cinco anos (ou seja, 9.106). Nos últimos anos, também cresceram as denúncias
à Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos Públicos (Anpac), que
chegam a 50 e-mails/dia. Incluem-se aí queixas contra as bizarrices de editais.
O
caso mais recente, e que teve grande repercussão, foi a seleção para a Polícia
Civil da Bahia. O edital dizia que as candidatas aos postos de delegada,
escrivã e investigadora teriam que passar por “avaliação ginecológica
detalhada, contendo os exames de colposcopia, citologia e microflora”, o tal do
papanicolau. Os exames seriam dispensados para aquelas “com hímen íntegro”,
que, no entanto, deveriam comprovar a virgindade via atestado médico, com
assinatura, carimbo e CRM do profissional. O governador Jacques Wagner acabou
intervindo e determinando a suspensão dos itens que pudessem constranger ou discriminar
as mulheres.
Para
Alexandre Lopes, advogado e professor especialista em direito público,
exigências esdrúxulas como a da Bahia são abusivas: violam o inciso III do
artigo 1º da Constituição, que consagra o princípio da dignidade, bem como seu
artigo 5º, que dispõe sobre o princípio da igualdade e o direito à intimidade,
vida privada, honra e imagem:
—
Exigir que as mulheres se submetam a tamanho constrangimento é, no mínimo,
discriminatório, uma vez que tal exigência não tem qualquer relação com as
atribuições do cargo. Além disso, torna mais oneroso o concurso para as
candidatas do gênero feminino.
Sérgio
Camargo, também advogado e professor de direito público, ressalta que as
limitações contidas nos editais são legais, quando pertinentes ao exercício da
função. Caso do peso do candidato em editais para algumas tarefas em órgãos de
segurança pública e força militar. Mas só se pertinentes:
—
Em outras funções, como no concurso de 2011 para professor da rede estadual de
São Paulo, em que candidatos foram eliminados por estarem obesos, não vejo
razão, já que a robustez física nada tem a ver com a docência. No caso, a
constitucionalidade é duvidosa.
Maria
Thereza Sombra, da Anpac, vai além. Tais exigências, diz, têm prejudicado a
imagem dos concursos, já que a lei não prevê limites de peso, altura, entre
outros, na criação das carreiras.
A
procuradora do Trabalho Lisyane Chaves Motta reforça que a inclusão de itens
discriminatórios atinge direitos fundamentais e que existem medidas judiciais
que podem ser adotadas tanto pelos candidatos quanto pelo Ministério Público,
de forma prévia, através do questionamento do edital ou após a realização das
provas:
—
O Ministério Público pode buscar judicialmente ou extrajudicialmente que sejam
retirados itens discriminatórios do edital. Pode ainda pleitear judicialmente a
nulidade do concurso.
Para
evitar surpresas na hora H, os candidatos devem fazer uma leitura minuciosa do
edital, analisando item por item, e não só aqueles referentes às disciplinas
exigidas. Até para saber o que precisará enfrentar.
—
O candidato deve ficar atento a todos os detalhes, se inteirar sobre critérios
de ingresso: o que pode ter ou não — sugere o advogado Alexandre Lopes.
Apesar
de saber dos pormenores do edital do concurso de 2008 da Polícia Militar do
Rio, que proibia tatuagens, um candidato carioca, de 27 anos, decidiu arriscar.
Como já era esperado, passou pelas duas primeiras fases da seleção, mas acabou
reprovado no exame médico:
—
Mesmo tendo duas tatuagens, homenagem que fiz a meu pai após ele sofrer dois
enfartes, fiz o concurso. Há policiais tatuados, e os meus desenhos só são
vistos quando estou de bermuda e camiseta. Por isso, eles só seriam percebidos
durante os exercícios físicos aos quais os soldados são submetidos, mas não ao
usar a farda.
Depois
de mais de três anos de luta na Justiça, no mês passado, saiu a sentença
definitiva, dando ganho de causa ao candidato, que está licenciado. A decisão
do Supremo Tribunal Federal já foi publicada e, agora, ele aguarda a
notificação para ser definitivamente reintegrado à corporação.
Eliminado apenas pela probabilidade
—
A luta foi grande, mas valeu. Minha vitória servirá de exemplo tanto para os
colegas que perderam na Justiça, quanto para aqueles que venham a sofrer
retaliação semelhante — diz da Matta.
Embora
polêmica, diz o advogado Sérgio Camargo, tatuagem só pode impedir a
participação de um candidato quando a aparência for determinante para o
exercício funcional. Ou seja, se o desenho for no rosto, pescoço, ficando muito
à vista.
O
que causou a eliminação de outro candidato ao concurso para os Bombeiros do
Rio, no entanto, não constava do edital. Com 21 anos, ele foi aprovado na prova
escrita e no exame de aptidão física, mas parou por aí. Durante a avaliação
médica, foi detectada uma escavação no nervo ótico, problema que pode levar ao
glaucoma, e ele foi reprovado. Só que o jovem não apresentava nenhum sintoma ou
outro indício que pudesse, um dia, ter a doença.
Inconformado
com a eliminação, o candidato se submeteu a exames complementares, que
comprovaram estar saudável e sem nenhum problema oftalmológico. Diante da
recusa da corporação em aceitar os exames e sua reincorporação ao concurso, o
jovem entrou na Justiça. Ele agora aguarda os trâmites legais e torce para
ganhar a causa:
—
Só tinha duas opções: fazer novo concurso ou entrar na Justiça. Como, no meu
caso, não há cirurgia que possa corrigir o problema, optei pela ação.
Anpac pede regulamentação do setor
Segundo
a Anpac, “para moralizar os concursos e reduzir as reclamações dos candidatos”,
é preciso criar norma jurídica que regulamente esses processos (estabelecendo
prazos, reserva de vagas, período de validade etc.).
—
A regulamentação não deve e não pode esperar mais. Tem que ser definitiva, ágil
e promulgada em todas as esferas do poder público — afirma a vice-presidente da
entidade, Maria Thereza Sombra, lembrando que, no âmbito federal, projeto de
lei nesse sentido, o 4.689/12, está em análise na Câmara dos Deputados. —
“Quero lei” devia ser o slogan de todos os concursandos.
Por
Ione Luques
Fonte
Extra – O Globo Online