Tem sido cada vez mais frequente a procura
do Poder Judiciário por adquirentes de (futuras) unidades autônomas,
compromissadas à venda pelo incorporador, nos termos do artigo 29, da Lei 4.591/64.
Foram diversos os fatores econômicos e
sociais que contribuíram para o enorme crescimento desse mercado (por exemplo
existência de grande demanda reprimida, advento da alienação fiduciária de bem
imóvel e do Sistema de Financiamento Imobiliário, política de incentivo e
facilitação de acesso ao crédito, elevação do poder econômico da população em
geral), sendo o cenário marcado por acirrada disputa entre as construtoras e
incorporadoras, que se obrigam perante o mercado a lançar e entregar
quantidades crescentes de metros quadrados e empreendimentos.
Por parte dos adquirentes, tem-se a figura
mais comum do consumidor que adquire o imóvel com a intenção de ali fixar sua
residência.
Ocorre que esse vertiginoso crescimento
evidenciou uma série de práticas contrárias aos direitos dos adquirentes, tal
como a cobrança compulsória por serviços de corretagem e assessoria técnica,
estabelecimento de multa contratual apenas em face do adquirente ou, então, de
multas iniquas contra as incorporadoras, instituição de mandato com poderes
exacerbados, entre tantas outras.
A par de tantas irregularidades, aquela que
realmente parece capaz de tirar o adquirente do (sempre cômodo) estado de inércia,
em busca do Poder Judiciário, é o atraso na entrega das chaves, sobretudo
quando superado o chamado “prazo de tolerância”, que nada mais é do que um período,
estabelecido nos contratos padronizados de praticamente todas as
incorporadoras, somado ao prazo de vencimento da obrigação. Geralmente esse
prazo não ultrapassa cento e oitenta dias e tem sido aceito pela jurisprudência
como válido, justamente por conta das diversas variantes que podem atuar sobre
uma obra.
A ação mais comum, movida pelos adquirentes,
é aquela que persegue o ressarcimento dos danos, decorrentes da mora no
cumprimento da obrigação de entregar as chaves, tais como o preço dos alugueres
pagos durante o atraso, os custos com depósito de móveis, os danos morais (em
certas situações), os lucros cessantes e as penalidades contratuais[1]. Nesse
tipo de demanda o consumidor ainda pretende que a obrigação de entrega da
unidade seja adimplida pela construtora, limitando o seu pedido, assim, ao
ressarcimento dos danos relativos ao atraso.
No entanto, há também ações com pedido de
rescisão do contrato. Nesses casos, seja porque a mora é enorme, seja por não
haver mais interesse no cumprimento por parte do adquirente, torna-se inevitável
o reconhecimento do direito à rescisão contratual, com a devolução dos valores
pagos. Mas a pergunta que se faz é: além dos valores pagos pelo adquirente,
acrescentados dos consectários legais, faz ele jus ao recebimento de algum
valor adicional?
O presente artigo pretende analisar essa
situação e responder a pergunta lançada. Isso porque, como se verá, parece que
a jurisprudência, de forma geral, tem pouco refletido acerca dessa questão.
Tomemos como ponto de partida o seguinte
julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
RESCISÃO
DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA C/C DEVOLUÇÃO DE QUANTIAS PAGAS E INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - Ação julgada parcialmente procedente, com a
devolução integral dos valores pagos - Alegada inadimplência da adquirente - Inocorrência
- Não comprovação do inadimplemento - Rescisão operada por culpa da ré, que não
entregou a obra - Excludente da culpa não comprovada - Argumentação de que as
partes devem obedecer ao quanto contratado, com a devolução parcial das
parcelas pagas, sob pena de afronta ao princípio do pacta sunt servanda - Inadmissibilidade
- Cláusula abusiva, nos termos do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor (Lei
nº 8.078/90) - Dano Moral E MATERIAL - Inocorrência - Hipótese de mero
descumprimento contratual - Sentença mantida - Apelos desprovidos. (TJSP, Apelação
Cível n. 0210151-23.2009.8.26.0100, 6ª Câmara de Direito Privado, Desembargador
Relator Percival Nogueira, julgado em 09.08.2012).
Nesse caso, inconformados com o atraso na
entrega do apartamento, os adquirentes moveram ação judicial pleiteando: (i) a
rescisão do compromisso de venda e compra; (ii) a devolução dos valores até então
pagos; e (iii) uma indenização por danos morais.
Extrai-se do relatório que o compromisso de
venda e compra havia sido firmado pelas partes em 12.02.2007, prevendo a
entrega do imóvel em 17.11.2009, com a possibilidade de atraso máximo de 120
dias, ou seja, até 17.02.2010. Em abril de 2010 as obras do empreendimento não
haviam começado.
Diante dessa situação o Tribunal julgou
procedentes os pedidos constantes dos itens “i” e “ii”, determinado a restituição
dos valores pagos, acrescidos dos consectários legais, e negando o pedido de
indenização por danos morais. Em uma rápida reflexão já se constata quão
injusta, efetivamente, é a solução. Mas, antes de adentrar nessa análise,
cumpre fazer um breve estudo sobre as funções da responsabilidade civil nos
dias atuais.
Nas lições doutrinárias sobre o tema é unânime
a afirmação de que a responsabilidade civil possui a função de reparar o dano
causado. A maioria dos escritos, especialmente os cursos de Direito Civil, não
se propõe a analisar as outras funções da responsabilidade civil, ainda que
para afastar sua aplicação.
Esse silêncio tem uma razão histórica. Como é
sabido e consabido, a responsabilidade já teve um caráter essencialmente
punitivo. No Código de Hamurabi (1.700 a.C.), por exemplo, se o desabamento de
uma casa ocasionasse a morte do filho, o pai tinha o direito de exigir a morte
do filho do construtor. Em Roma, especialmente após a Lei das XII Tábuas (462-540
a.C.), surgiram as primeiras ideias de composição voluntária e indenização
pecuniária como forma de reparação do dano. Deu-se início a um viés reparatório
da responsabilidade, que ganhou ainda mais campo por meio da Lei Aquília (por
volta do ano 286).
A evolução do Direito Romano foi tal que
alcançou o estudo dos chamados danos morais. De todo modo, como se sabe, o caráter
punitivo ainda estava presente (e.g. por meio de penas que previam o pagamento
de um determinado múltiplo do valor do bem danificado ou destruído).
Esse cenário sofreu radical mudança com a
chamada codificação moderna, que tem na França pós-revolução o seu marco
inicial. A sistematização do direito em Códigos levou, imediatamente, a uma
mais clara e evidente separação entre direito civil e penal. Como consequência,
ganhou corpo o raciocínio de que ao direito penal competiria preocupar-se com o
agente, disciplinando os casos em que deva ser responsabilizado e punido,
enquanto ao direito civil caberia tutelar a vítima, reparando-a. A partir deste
momento a doutrina civilista passa a defender que a responsabilidade civil,
diversamente da penal, tem a função de reparar o dano – deixando de lado aquele
caráter punitivo que vinha presente desde o Código de Hamurabi.
E assim, essa função da responsabilidade
civil — de reparar o dano — se refletiu nos subsequentes ensinamentos, nas
legislações e, é claro, nos Códigos.
No Brasil, o Código Bevilacqua de 1916
repetiu a legislação dos principais países europeus, centrando a
responsabilidade civil em sua função reparatória, ao prever que o causador do
dano “fica obrigado a reparar o dano” (art. 159). Fórmula que acabou sendo
mantida no artigo 186, do Código Civil vigente, que ainda incluiu a regra
contida no art. 944, segundo a qual “a indenização mede-se pela extensão do
dano”.
Mas é inegável a evolução da sociedade desde
a era da codificação. Nesses mais de dois séculos transformou-se profundamente
por meio da Revolução Industrial e seu maquinismo, das duas Grandes Guerras, da
crise de 1929 e a crescente interferência do Estado, além da atual Revolução
Tecnológica e da Globalização que, associados a uma notória explosão demográfica,
levaram a uma sociedade caracterizada pelo consumo massificado, hipercomplexa,
tecnológica e globalizada.
De acordo com o recenseamento realizado em 2010,
o Brasil conta com mais 190 mil habitantes, sendo que, nesse mesmo ano de 2010,
tramitaram por nossos Tribunais, entre novos e pendentes de julgamento final,
cerca de 83,4 milhões de processos.
Portanto, levando em consideração o cenário
atual — de multiplicação de danos e mudanças sociais profundas — deve-se
refletir e avaliar se caberia ao direito civil, ainda hoje, a única e exclusiva
função de reparar o dano, relegando para outras áreas a função punitiva. Inclusive
— e especialmente —, vis a vis o ordenamento jurídico atual, que, como não
poderia deixar de ser, evoluiu.
Nota-se hoje uma maior preocupação com a
prevenção de danos, baseada na máxima de que é preferível evitar um dano a
reparar uma vítima. Essa preferência pela prevenção, presente desde Roma por
meio do princípio neminem laedere (Digesto 1.1.10.1), pode ser observada no
sistema atual em diversas regras. Por exemplo: Código de Defesa do Consumidor (artigos
6º, VI, 42, § único e 84, §§ 1º a 5º); Código de Processo civil (artigos. 273, 461,
461-A e 798); Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos 22 e 24 e o título
III dedicado à prevenção); e Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81,
artigos 2º, 14 e 15).
Atentos a essa sistemática de prevenção
imposta pela legislação, os tribunais tem reconhecido as funções punitiva e
preventiva da responsabilidade civil. Assim ocorre, por exemplo, quando há ofensa
a direitos da personalidade, por meio da quantificação dos danos morais em
valor hipoteticamente capaz de reparar a vítima e, também, de punir e inibir a
prática daquele ato danoso.
No âmbito dos direitos autorais, a jurisprudência
também reconhece de longa data o caráter sancionatório e preventivo da
responsabilidade civil (vide REsp 150.467/RJ e REsp 23.746/SP).
Diga-se, a propósito, que a fixação da
indenização com caráter sancionatório-preventivo não configura ofensa ao artigo
944, do Código Civil, segundo o qual “a indenização mede-se pela extensão do
dano”. Apesar dessa conclusão demandar uma análise mais extensa, incompatível
com o curto espaço deste estudo, consigne-se por ora qual seria a extensão de
um dano moral, para que possa ser medido.
Não é à toa que a doutrina diverge,
enormemente, em torno desse assunto, havendo inúmeros critérios propostos para
fixação do quantum indenizatório em caso de dano extra patrimonial. Também não é
sem motivo que os tribunais atribuem valores absolutamente discrepantes diante
de situações semelhantes. O único ponto convergente parece ser a constatação de
que o dano extra patrimonial não possui uma extensão exata, tal como ocorre com
o dano patrimonial.
E inexiste, realmente, uma medida exata do
dano extra patrimonial. Apesar de não haver livre arbítrio do juiz na fixação
da indenização do dano extra patrimonial, pois há critérios válidos e legítimos
a serem observados (e.g. gravidade do ato ilícito, repercussão na esfera do
ofendido e condição financeira das partes), não se é capaz de medi-lo. Nesse
tocante, inclusive, o parágrafo único, do artigo 944, não precisaria sequer
estar positivado no que diz respeito a um dano extra patrimonial.
Daí ser lapidar o ensinamento de Geneviève
Viney, autora francesa que, após ponderar que o princípio da reparação
integral, pelo menos teoricamente e em uma primeira análise, realmente pareça
impedir a fixação de indenização com objetivo de dissuasão e prevenção, afirma
que “esta maneira de ver as coisas é demasiado radical porque desconhece a
variedade de situações concretas e subestima as aptidões reais da
responsabilidade civil para exercer uma influência em alguns comportamentos
humanos”.[2]
Tem-se, assim que a invocação da
literalidade da regra contida no artigo 944, com o objetivo negar o caráter
punitivo e preventivo da responsabilidade civil, especialmente no que toca aos
danos extra patrimoniais, é inadequada.
Daí, em que pesem abalizadas opiniões contrárias,
o sistema jurídico não ser refratário às funções punitiva e preventiva da
responsabilidade civil.
Retornando ao exame da solução do Tribunal,
o v. acórdão rejeitou o pedido de indenização por danos morais por se tratar de
mero descumprimento contratual. Ao fim e ao cabo, portanto, a Construtora
acabou condenada a devolver os valores pagos pelos Autores, ficando isenta do
pagamento de qualquer outra indenização.
Em termos práticos e econômicos, essa solução
garantiu à Construtora um ótimo negócio, não obstante baseado na lesão aos
autores da demanda e a outros incautos adquirentes.
A Construtora havia compromissado a venda um
apartamento e, mais de dois anos depois, já vencido o prazo de entrega em
alguns meses, não tinha sequer iniciado as obras. Na prática, portanto, a
Construtora lançou um empreendimento no mercado, não realizou nenhuma obra e,
após alguns anos, acabou obrigada a devolver o valor recebido, corrigido pelo
INPC.
Ora, é certo que a Construtora não obteria
no mercado financeiro um empréstimo tão barato quanto lhe custou lesar
consumidores (a taxa de juros encontrada no site do Banco Central, para captação
financeira por pessoa jurídica com conta garantida, varia entre 1,2% e 9% ao mês).
Ou seja, a lesão aos adquirentes foi realmente uma opção economicamente
compensatória para a Construtora. Dessa forma, o acórdão, além de não inibir a
prática do ato lesivo, serviu de estímulo para sua recalcitrância.
Além disso, sob a ótica dos adquirentes, a
decisão também passou ao largo de cumprir com as funções da responsabilidade
civil.
A solução deixa de observar que a valorização
do mercado imobiliário paulista entre os anos de 2009 e 2012 foi das maiores já
experimentadas pelo setor, razão pela qual os adquirentes certamente não
conseguirão adquirir um imóvel nas mesmas condições de preço, qualidade,
tamanho e localização daquele que deixou de lhes ser entregue.
Em outras palavras, irão receber o dinheiro
pago de volta, corrigido e com juros de 1% ao mês, mas com esse montante não
conseguirão adquirir imóvel semelhante. Logo, nem mesmo a reparação do dano foi
plena e satisfatória.
Some-se ao acima dito a circunstância, também
reconhecida no acórdão, de que o imóvel seria destinado à casa própria, ou
seja, à moradia dos adquirentes. Apesar de relatar esse fato, o decisum
desconsiderou a sua relevância, já que a importância do imóvel próprio, de
residência familiar, é ímpar e absolutamente notória. Há, no projeto de vida do
brasileiro, o conhecido sonho da casa própria, sensivelmente alterado em seu
percurso no caso em análise.
Conclui-se, então, que a simples devolução
do valor adiantado pelo adquirente, quando há inadimplemento substancial por
parte da incorporadora e a rescisão do ajuste, deixa de atender, em maior ou
menor medida, as funções da responsabilidade civil. Não repara
satisfatoriamente. Não inibe. Não pune.
[1] Além dos pedidos
relacionados a outras irregularidades, como a cobrança compulsória de
corretagem e assessoria técnica.
[2] Geneviève Viney,
Tratado de derecho civil: introducción a la responsabilidad (trad. Fernando
Montoya Mateus), Colombia: Universidad Externado, p.89.
Por Luiz Henrique Sapia Franco
Fonte Consultor Jurídico