União estável nem sempre será melhor do que o
casamento civil quando casal quer se desvincular de regras da partilha de
herança; entenda por quê
Alianças: Interpretações sobre a parte que cabe ao
companheiro na união estável ainda são muito diversas
O
tipo de contrato firmado pelo casal para formalizar sua união pode ter inúmeras
implicações legais. Sabendo disso, alguns têm optado por firmar um contrato de
união estável, em vez do casamento civil, para evitar obrigações que teriam em
relação à herança no caso da morte de um dos companheiros. Ocorre que, além de
a união estável também atrelar os companheiros a uma série de regras sobre
herança, algumas questões ainda não estão muito bem definidas e a Justiça pode
ter diversas interpretações sobre a questão. Por isso, decidir entre casamento
e união estável é muito mais complexo do que parece à primeira vista e nem
sempre a união estável será o melhor caminho.
A união estável
Na
união estável, seja namorando ou casando apenas no religioso, não há mudança no
estado civil do casal. Esta união também não exige formalidade para ser
desfeita ou constituída. Em função disso, há espaço para uma larga discussão
sobre o momento exato em que a união estável de fato começou. Isso pode ser
crucial, por exemplo, quando um companheiro falece e o outro tenta provar na
Justiça que tinha uma união estável, para obter sua parte na herança.
Rodrigo
Barcellos, sócio do escritório Barcellos Tucunduva Advogados, explica que a
definição de quando começa a união estável é o que no âmbito jurídico se chama
de matéria de fato, quando algo não é definido a partir da Lei, mas a partir de
um histórico que deve ser narrado quando os direitos são pleiteados. “Quando a
pessoa deixa de ficar e passa a namorar? Cada um terá uma resposta. O mesmo se
dá com a união estável. Alguns falam que deixa de ser namoro para ser união
estável quando a pessoa mora junto, mas outros falam que a união estável não
ocorre só quando os companheiros coabitam, por isso, a questão vai ser definida
caso a caso, é matéria de prova”, diz.
Segundo
ele, em alguns casos pode ser fácil comprovar a existência da união estável,
como quando o casal faz uma festa de casamento, mas em outros o processo pode
ser mais complexo.
Rodrigo
da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM) explica que a união estável também pode ser oficializada por meio de
uma escritura feita em cartório e existe a possibilidade de definição de um
regime de bens pelo casal. "Ao fazer o contrato de união estável, se o
casal quiser, ele pode definir o regime de comunhão de bens, comunhão parcial
de bens ou de separação de bens", afirma.
Discussões
Uma
das maiores discussões sobre as diferenças da união estável e do casamento
civil é a questão da partilha da herança.
Segundo
o artigo 1.790 do Código Civil: “A companheira ou o companheiro participará da
sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente [que foram
comprados] na vigência da união estável [...]”. Ou seja, o companheiro terá
parte na herança dos bens comuns comprados durante a união, mas não dos bens
particulares, adquiridos pelo companheiro antes do casamento. “O Código Civil
tratou o cônjuge de um jeito e o companheiro de outro no que diz respeito à
herança”, diz Barcellos.
Existe
uma discussão, porém, sobre a constitucionalidade deste artigo, porque a
Constituição dá margem a uma interpretação diferente, conforme Rodrigo
Barcellos explica. O artigo 226, parágrafo terceiro da Constituição reconhece a
união estável como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão
em casamento. “A Constituição fala neste artigo que a união estável é o espelho
do casamento, por isso existe a discussão sobre a inconstitucionalidade do
artigo 1.790 do Código Civil, já que ele diferencia a companheira da esposa”,
diz o sócio do Barcellos Tucunduva Advogados.
Mas,
segundo ele, outros interpretam que, ao se dizer que deve ser facilitada a
conversão da união estável em casamento, a Constituição está na verdade
diferenciando uma coisa da outra, portanto o artigo 1.790 seria de fato
constitucional.
A
defesa de uma tese ou de outra – da diferenciação ou da equiparação entre a
companheiro e esposo – é feita, conforme Barcellos explica, de acordo com o que
convém para os envolvidos em cada caso. “Pode haver companheiro brigando para
defender que o artigo 1.790 é inconstitucional, e outro para defender que é
constitucional”, completa.
Mas que diferença faz ser ou não equiparado a esposo?
Para
entender o motivo dessa divergência é preciso compreender o que ocorre no
casamento civil em relação à herança. Vamos tomar o exemplo mais comum, o do
casal casado em comunhão parcial de bens, que é o regime que vigora
automaticamente, quando não há pacto antenupcial.
Neste
regime, cada cônjuge é meeiro do outro. Isto é, quando um morre, o outro tem
direito à metade dos bens adquiridos a título oneroso (comprados) na constância
do casamento. Em relação aos bens adquiridos pelo falecido antes de ele se
casar, assim como eventuais heranças e doações que ele tenha recebido, o
cônjuge sobrevivente concorrerá como herdeiro.
Por
exemplo, se um homem tem duas casas de 100 mil reais cada, sendo que uma foi
comprada antes e a outra depois do casamento, sua esposa ficará com metade de
uma das casas (50 mil reais) se ele morrer antes dela. Essa parcela é a chamada
meação, aplicável apenas aos bens comuns. Os 50 mil reais restantes, bem como a
outra casa, formarão sua herança, que será repartida por seus herdeiros.
De
acordo com o artigo 1.829 do Código Civil, o cônjuge é herdeiro necessário e
concorre com os descendentes na herança, desde que não seja titular de meação.
Ou seja, no caso do casamento em comunhão parcial de bens, a esposa concorrerá
com os descendentes como herdeira apenas com os bens sobre os quais ela não tem
direito à meação.
No
exemplo acima, ela terá de dividir com os demais herdeiros necessários apenas
os 100 mil reais da casa adquirida antes do casamento. Os 50 mil restantes da
meação da outra casa, que era bem comum, serão repartidos apenas entre os
demais herdeiros.
Assim,
além dos 50 mil reais que a esposa receberá a título de meação, ela também
receberá uma parte da outra casa de 100 mil reais, que era patrimônio
individual do marido.
Pela
Lei, pelo menos metade da herança deve ser destinada aos herdeiros necessários
- cônjuges, descendentes e ascendentes. A outra metade pode ser destinada a
quem o autor da herança assim desejar, por meio de doação em vida ou
testamento. Assim, no exemplo acima, se o casal tivesse dois filhos, a esposa
ficaria com 50 mil reais da meação e repartiria, pelo menos, metade da outra
casa com os dois filhos.
Ou
seja, ela levaria, no mínimo, cerca de 66 mil reais do patrimônio de 200 mil
reais do marido (50 mil reais da casa comum, mais 16 mil reais, da casa
particular). Mas se os 100 mil reais da casa particular forem inteiramente
repartidos entre os herdeiros necessários, ela pode chegar a levar 83 mil
reais.
Agora
imagine que esse mesmo casal não tivesse se casado no civil, mas tivesse apenas
uma união estável com comunhão parcial de bens. Neste caso, a companheira
sobrevivente ficaria com a meação (50 mil reais referente à casa que era bem
comum), mas não concorreria com os herdeiros necessários na herança dos bens
particulares do companheiro, apenas na dos bens comuns.
É
justamente o contrário do que o ocorre no casamento. Assim, ela só terá direito
a repartir com os demais herdeiros os 50 mil reais que sobram da casa adquirida
na constância da união estável. Os 100 mil reais da casa comprada antes da
união estável serão repartidos apenas entre os demais herdeiros necessários.
Se
apenas metade da herança for distribuída entre os herdeiros necessários, ela
dividirá com os dois filhos apenas 25 mil reais (metade do valor da meação do
companheiro falecido). Ou seja, nesse caso, a união estável é desvantajosa para
a companheira sobrevivente. Ela só vai levar 58 mil reais - os 50 mil reais da
meação, mais 8 mil reais (um terço) de herança dos bens comuns. Apenas se toda
a herança (os 50 mil reais da casa que era bem comum) for distribuída entre os
herdeiros necessários é que ela vai conseguir, no máximo, 66 mil reais.
Esta
situação, no entanto, só ocorre quando se interpreta que o artigo 1.790 é
constitucional e, portanto, que a companheira tem direitos diferentes dos da
esposa. Caso este artigo seja julgado inconstitucional, a companheira terá os
mesmos direitos da esposa.
Mas
se no exemplo acima não ser equiparada à esposa foi desvantajoso para a
companheira, caso o falecido tivesse bens comuns mais valiosos do que seus bens
particulares, ter os mesmos direitos da esposa seria mais vantajoso para ela.
Ou seja, a união estável seria mais benéfica do que uma eventual união civil.
Tudo pode acontecer
Portanto,
dependendo do patrimônio deixado pelo falecido, uma ou outra interpretação
sobre o artigo 1.790 pode ser melhor. “O companheiro é sempre herdeiro. O que
muda é a participação dele: se for entendido que o artigo 1.790 se aplica, o
companheiro será herdeiro dos bens comuns; mas se for entendido que não se
aplica, então o companheiro será equiparado ao cônjuge, tornando-se herdeiro
dos bens particulares”, explica Barcellos.
Ele
acrescenta que o companheiro nunca vai deixar de ser herdeiro. Mesmo no regime
de separação total de bens, o companheiro - assim como o cônjuge casado nesse
regime - pode ser herdeiro, se o juiz assim entender (existem também discussões
se isso é válido ou não). "Se a pessoa está com os filhos e não quer que o
outro receba absolutamente nada, não há outro jeito: ele precisa viver sozinho,
ser um ermitão, não se relacionar", conclui o sócio do Barcellos Tucunduva
Advogados.
Dependendo
da interpretação do juiz após a morte de um dos membros do casal, o
sobrevivente pode ser beneficiado ou prejudicado. Em função disso, na hora de
fazer o planejamento de vida e sucessório, convém ao casal pesar quem deve ser
mais favorecido quando um dos dois falecer, se os filhos ou o membro
sobrevivente do casal.
Definido
isso, é recomendável consultar um advogado para saber qual regime de bens e
tipo de união é mais vantajosa para aquela configuração familiar,
principalmente se houver algum desafeto na família. Há casais que chegam a se
divorciar para firmar uma união estável, uma vez que essa situação lhes é mais
interessante. Além disso, o regime de bens do casamento pode ser modificado por
meio de um pacto pós-nupcial.
Por
Priscila Yazbek
Fonte
Exame.com