Chifres, vapores de enxofre e gritos de sofrimento o anunciam. Responde por Lúcifer para os cristãos, Loki para os nórdicos, Exu para os africanos e Karna para os Hindus. Quem nunca ouviu falar em um pacto com o Diabo? Boatos históricos apontam aqueles que, supostamente, venderam a alma em troca da satisfação de seus desejos mundanos. Juram que o guitarrista Robert Johnson, precursor do blues, adquiriu sua espantosa habilidade musical subitamente em uma encruzilhada em Mississipi, EUA. Defendem que a magnífica Divina Comédia, com seus nuances e enigmas, só poderia resultar da aproximação do seu autor, Dante Alighieri, com o Príncipe do Mal.
Os que acreditam na personificação do Mal preferem evitar o assunto. A maioria prefere considerá-lo inexistente. Mas só os conhecedores do Direito têm certeza. Não é necessário buscar respostas metafísicas, refugiar-se em religiões ou recorrer a simpatias e exorcismos. Basta enxergarmos à luz do Direito: o contrato de venda de alma é absurdo, pois contraria uma série de normas jurídicas.
Dizem que a origem desse contrato remonta ao direito romano e que ele seria uma manifestação do pactum romano, espécie de acordo de vontades sem obediência a formas, que junto com o contractus (acordo em que a forma era exigida) compunha o gênero conventio. Assim, de forma precursora, o Diabo, já nesse tempo, defendia o abandono do formalismo presente nos meados da República Romana. Coincidentemente ou não, é nesse período em que Roma transformou-se de simples cidade-estado em grande Império. Não teria tal ambição recebido uma ajudinha sobrenatural?
Esse consenso maligno seria realmente uma espécie de compra e venda? Nós juristas não podemos nos deixar levar pelos jargões populares que usam a imagem negativa de “Venda” para se referir a esse inusitado acordo, título forte e reprovável, que visa depreciar ainda mais a decadente reputação do Belzebu. Na verdade esse contrato mais se aproxima da espécie Troca ou permuta, uma vez que ele é feito com base na utilidade e necessidade da prestação e contraprestação em determinado momento, sem, contudo, serem estabelecidas estimativas pelo valor real do objeto. Contudo, para a Troca, aplicam-se as disposições referentes à compra e venda (art.533 CC).
Neste ponto, qualquer graduando atento já acusaria a invalidade desse contrato sob o argumento de ele não atender aos requisitos de validade do negócio jurídico. Isso, uma vez que contratos são negócios jurídicos com pluralidade de partes, dotados de patrimonialidade, que, nos termos do art. 104, II do Código Civil, devem ter objeto possível. Portanto, o contrato seria inválido por ser impossível a alienação de almas. Porém, o Diabo, como eloquente advogado que é, provavelmente convenceria a todos da ausência de provas para comprovar essa impossibilidade.
Assim, na eventualidade de ser considerado válido, o contrato com o Satan ainda seria defeituoso, o que salvaria os incautos que o assinaram com sangue.
O senhor das trevas, mestre da mentira e enganação, sempre age com dolo. Ele utiliza de fraudes, ardis, enganações, todos os artifícios naturais e sobrenaturais para enganar os “Faustos” a venderem suas preciosas almas. Basta lembrar do tradicional exemplo da cobra e da maça, que nunca perde a força de evidenciar a ardileza do tal Lúcifer. Assim, nos termos do art. 145 do Código Civil, o contrato seria anulável.
Também ocorre a coação, que vicia a declaração da vontade e gera a extinção da obrigação. Independentemente do sexo, idade e condição daquele que se depara com o Demônio (art. 153 CC), provavelmente não deve haver nada nesse mundo, ou em outro, que gere mais temor que a própria personificação do Mal. Como se isso, por si só, não configurasse constrangimento, o Demo ainda utiliza de grave ameaças, sugerindo possibilidades de ocorrerem desastres iminentes com o incauto, sua família e até mesmo seus bens (art.151 CC).
Nos casos em que o Diabo foi espontaneamente procurado nas encruzilhadas em que se localizam seus escritórios, deve ser alegado vício por ocorrência de lesão (art.157 CC), uma vez que só buscam esse contrato os inexperientes e necessitados. Assim, serão atendidos os requisitos legais, pois há explicita ofensa ao princípio do equilíbrio entre as prestações, porque não existe prazer mundano que se iguale à danação perpetua e eterna trabalhando nas caldeirinhas do inferno.
O direito também tutela os vícios no objeto. Se o Capeta, por artimanha enjeitar a prestação com defeitos e vícios ocultos que a tornem imprópria ao uso ou diminua seu valor, o contratante sensato pode alegar a existência de vício e requerer a redibição da coisa, conforme o art.441 CC.
Feliz era o Tinhoso na época em que vigorava a teoria clássica dos contratos em que a autonomia da vontade era absoluta e os contratos eram intangíveis. Atualmente isso mudou, não há brecha para o “Coisa-Ruim”. Os princípios contratuais como o da dignidade da pessoa humana, do equilíbrio e da boa fé limitam a autonomia privada visando efetuar a justiça contratual, sendo até mesmo admitida a revisão contratual em alguns casos específicos.
Não é atoa que ele tem perdido sua popularidade.
Esse texto lúdico serve ao objetivo de "brincar" com a matéria estudada. Existem outras inúmeras inconformidades desse contrato mitológico com o direito contratual brasileiro, além de vários aspectos que podem ser abordados pelo viés jurídico. Cabe ao comentarista abordá-los ou criar situações hipotéticas para os exemplificar.
Por Macgarem Hübner