Sua
preferência em séries de TV, o caminho que você faz para o
trabalho e até o segredo que conta a um amigo podem estar sendo
registrados neste momento. A permissão para que aplicativos acessem
um celular ou o fato de um CPF ser informado durante o cadastramento
do cliente numa loja tornam os dados pessoais vulneráveis. Na
internet, hábitos e preferências se transformam em mercadorias. Até
o uso de documentos online, como identidade virtual, CNH digital e
e-Título, permite ao governo acessar informações de seu
smartphone. Na maioria das vezes, as autorizações são dadas pelo
próprio usuário, que não presta atenção às permissões que
concede quando baixa uma nova ferramenta.
Os
aplicativos que pedem acesso ao microfone do aparelho — smartphone,
tablet ou SmartTV — captam o áudio externo e detectam
palavras-chave que são cruzadas com um banco de dados de anúncios.
Quando há semelhanças, propagandas começam a aparecer durante a
navegação na rede.
Experiência
que a estudante de Oceanografia Giulliana Mootoka já vivenciou: após
uma conversa com amigas sobre bicicletas, mesmo sem ter pesquisado o
assunto na internet, ela passou a ver anúncios sobre o produto ao
navegar na web.
— Ainda
teve o dia em que uma amiga desabafou sobre uma briga com o namorado,
dizendo que era ele infantil. Entrei no Pinterest (rede social de
compartilhamento de fotos) e apareceu um post com título “12
sinais que o boy não é para casar”. Assustador! — contou.
Por
causa desse monitoramento, o Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Idec) promove a campanha “Sorria, você está sendo
rastreado”.
— Uma
farmácia que dá desconto quando você informa o CPF certamente tem
algum ganho oculto. Sem perceber, você acaba virando uma mercadoria
quando faz a compra — disse Anderson Ramos, especialista em
Segurança da Informação.
O
receio do Idec é o alto preço a pagar: uma pessoa que esteja doente
e tenha visitado o médico e comprado remédios com frequência, nos
últimos meses, pode ter essas informações levadas em consideração
quando pede crédito ao banco ou participa de uma seleção para uma
vaga de emprego. Por causa da suposta doença, o cliente pode ser
julgado como incapaz de pagar o empréstimo e até ser eliminado da
seleção para o trabalho, sem contar que pode passar a pagar mais
pelo plano de saúde.
VENDA
É PRÁTICA USUAL
Não
é apenas o Idec que luta por uma maior proteção dos dados dos
brasileiros. A Coalizão Direitos na Rede é uma teia independente de
organizações que busca contribuir para a conscientização sobre a
privacidade e a liberdade de expressão. Entre as críticas da
instituição, estão a vigilância em massa e o livre comércio de
dados pessoais entre empresas.
Presidente
da UPX Technologies, empresa de tecnologia especialista em segurança
digital, Bruno Prado explica que existem no mercado várias
companhias especializadas em vender dados para direcionar campanhas
publicitárias. Os compradores são firmas de e-commerce, serviços,
proteção de crédito e telemarketing, além de operadoras de TV e
seguradoras.
— Essas
empresas costumam ser grandes interessadas em ferramentas de Big
Data, que são capazes de reunir todos os dados, indicando interesses
pessoais, o que determinado usuário de uma rede social gosta de
consumir, hábitos de lazer, interesses profissionais e assim por
diante.
Nas
redes sociais, o internauta também informa mais do que imagina com
suas reações a certas postagens.
—
Bastam 150 reações em sua rede
social para que o algoritmo do Facebook, por exemplo, possa prever
seu comportamento de forma mais próxima do que seus amigos, segundo
um estudo de comportamento. Quanto mais você navega, mais fornece
insumos — afirmou André Miceli, coordenador do MBA em Marketing
Digital da Fundação Getulio Vargas (FGV).
ASSÉDIO
PARA CONTRATAÇÃO DE CONSIGNADOS
Foram
mais de 35 anos de trabalho até Marcus Machado, de 67 anos,
conseguir pedir a aposentadoria ao Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS). Desde então, seu telefone não parou de tocar. As
ligações insistentes eram de um serviço de telemarketing que
oferecia empréstimos consignados (com desconto em folha) para
aposentados. Do outro lado da linha, um desconhecido tinha todos os
seus dados, sabia que sua aposentadoria já havia sido concedida e
tinha até o valor do benefício. Para Machado, o assédio comprova a
invasão de privacidade e o vazamento de dados:
— As
ligações continuam até hoje, apesar de eu já ter feito várias
queixas.
Em
dois anos (2016 e 2017), o número de denúncias sobre empréstimos
irregulares na Ouvidoria do INSS chegou a 78.898 operações. O
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) já entrou com um
questionamento sobre o vazamento de dados de segurados junto ao INSS
por causa das queixas de cidadãos de todo o país, que também
recebem as ligações. Para a entidade, a prática viola o sigilo de
informações de aposentados e pensionistas.
O
INSS informa que não fornece informações de seus segurados sem
autorização, e que esses dados são tratados com total sigilo.
Ainda de acordo com a Previdência Social, “se existe servidor
fornecendo dados de beneficiários ou oferecendo empréstimos
consignados, é de maneira ilegal”. A orientação é a de que o
segurado formalize a denúncia pela Ouvidoria do INSS. O instituto
informou, ainda, que “que todas as denúncias recebidas são
consideradas suposições até a conclusão da apuração”.
PROJETO
DE LEI GARANTE PROTEÇÃO DO CIDADÃO
Na
última terça-feira, dia 3, a Comissão de Assuntos Econômicos
(CAE) do Senado apresentou um parecer favorável ao Projeto de Lei
Complementar (PLC) 53/2018, do deputado Milton Monti (PR-SP), que
regulamenta o tratamento de dados pessoais no Brasil, tanto pelo
poder público quanto pela iniciativa privada. O relatório foi
elaborado pelo senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) e, agora, segue
para votação no plenário da Cassa, em regime de urgência:
— Foi
um debate feito de modo concomitante na Câmara e no Senado. Ao longo
desse processo, dialogamos muito.
O
relator argumentou que a maioria das pessoas não tem consciência de
que seus dados são coletados a toda hora, seja ao navegar em redes
sociais ou ao checar o trânsito. Quando o projeto estiver em vigor,
os cidadãos terão mais controle e transparência sobre a forma como
as informações são processadas pelo setor público e pelas
empresas, que deverão informar para que finalidade serão usadas e
como serão tratadas. Em caso de desrespeito, as punições vão de
advertência a multa de até R$ 50 milhões.
A
pesquisadora em direitos digitais do Idec, Bárbara Simões, é
favorável ao projeto de lei sobre a proteção de dados para que o
cliente possa ter um maior poder de escolha e só forneça dados
quando estiver ciente dos riscos. Ela acredita que informações como
CPFs solicitados por lojas e farmácias podem ser usadas de forma
indevida. Para a pesquisadora, os dados sobre saúde são
particularmente sensíveis porque existe uma ameaça de que o
cruzamento massivo de hábitos e preferências tornem as
oportunidades limitadas e discriminatórias.
Por
outro lado, um projeto de lei, com origem no Senado, tenta mudar o
cadastro positivo de bons pagadores, criado em 2011, com informações
sobre histórico de crédito das pessoas. Hoje, a adesão é
voluntária mas, se a proposta for aprovada, a adesão se tornará
automática, e todos terão suas informações transferidas pelos
bancos à base de dados.
— A
ideia é que cada um seja avaliado por seu histórico de crédito e
beneficiado com taxas menores em financiamentos (se pagar as dívidas
em dia) — disse o relator, deputado Walter Ihoshi (PSD/SP).
Coordenadora
do Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública
do Estado do Rio, Patricia Cardoso critica a ideia:
— Isso
fere os direitos do consumidor e abre brecha para o vazamento de
dados.
Por
Bruno Dutra, Letycia Cardoso e Marcela Sorosini
Fonte
Extra – O Globo Online