O
direito de arrependimento, também conhecido como prazo de reflexão, foi
previsto no artigo 49 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e no
decreto presidencial 7.962/13.
O
instituto tem sua gênese na proteção do consumidor quando, no momento de
aquisição do produto ou serviço, não há tempo para a reflexão sobre a sua
adequação e necessidade frente às suas expectativas de consumo. Em outros
termos, visa a proteção contra as práticas comerciais agressivas, geralmente
verificadas nas vendas fora do estabelecimento empresarial, as quais
comprometem a própria integridade da declaração de vontade.
Os
casos clássicos exemplificados pela doutrina são as chamadas “vendas de porta
em porta”, que reduzem os riscos de reclamação e devolução; os contratos de
time-sharing ou multipropriedade, em que os consumidores são convidados para
local escolhido pelo fornecedor, em que servem buffet e entretenimento para
influenciar o lado emocional e ofertar produtos e serviços; e ofertas
publicitárias que reduzem o tempo de reflexão quanto do ato de consumo, tais
como o “ligue já” ou “os primeiros que ligarem terão determinado desconto”.
Neste
cenário, a legislação consumerista não visa privilegiar os consumidores,
tampouco prejudicar os fornecedores, mas sim trazer igualdade material à
relação jurídica. Desse modo, evitam-se as generalizações que trazem
arbitrariedade e são incompatíveis com a singularidade e a mutabilidade das
ciências humanas.
Hodiernamente,
na era da informática, despontou o comércio eletrônico. Fornecedores oferecem e
vendem seus produtos e serviços por meio da internet, disponíveis nos sites das
empresas, em links promocionais, nas propagandas feitas através de malas
diretas endereçadas aos e-mails dos consumidores etc.
Dessa
forma, será que toda a aquisição de produto ou serviço pela internet será
considerada marketing agressivo? Toda a compra pela internet estará sujeita ao
direito de arrependimento? Será que as técnicas de marketing agressivo também
não ocorrem dentro do estabelecimento físico do fornecedor?
É
necessário compreender a ratio legis[1] do direito de arrependimento — proteção
contra o marketing agressivo e possibilidade do contato imediato com o produto
para verificar se preenche as necessidades e expectativas — para que a occasio
legis[2] não limite à interpretação evolutiva do instituto às novas realidades
do direito cibernético.
O
presente artigo não tem o escopo de rechaçar o direito ao arrependimento,
relevante conquista do ordenamento jurídico brasileiro, apenas adequar a sua
ratio à nova realidade do comércio eletrônico e evitar que os consumidores
continuem exercendo de modo abusivo o direito de arrependimento (arts. 113,
187, 422 do CC/02).
Comércio eletrônico
O
art. 49 do CDC vincula o direito de arrependimento à realização do ato de
consumo fora do estabelecimento físico do fornecedor, presumindo que haverá
marketing agressivo e a ausência de contato imediato com o bem da vida
pretendido.
Ocorre
que as singularidades do consumo pela internet não podem ser presumidas como
resultado do marketing agressivo. Ao contrário, o consumidor é quem navega até
o estabelecimento virtual do fornecedor para adquirir produto ou serviço,
inclusive tem a sua disposição a maior ferramenta de pesquisa e informação
sobre a qualidade e os preços das mais variadas espécies de produtos e
serviços.
Chega
a ser leviano afirmar que o consumidor estaria sendo estimulado a agir de modo
precipitado ou impensado em seu ato de consumo. A impessoalidade das páginas da
internet se abrem e fecham ao exclusivo comando do consumidor, que, na maioria
das vezes, navega na comodidade de sua residência e imune as pressões
individuadas. Ou seja, o consumidor que, atendendo a uma necessidade própria,
acessa o estabelecimento virtual, está na mesma situação de quem se dirige ao
estabelecimento físico.
Há
diferença em adquirir um DVD ou livro (físico ou digital) pelo site ou no
estabelecimento físico? Em ambos os casos, o consumidor terá o pleno acesso às
características e informações essenciais dos produtos, podendo ainda pela
internet comparar preços e produtos com maior agilidade. Não houve marketing
agressivo e nem há a possibilidade de se afirmar que o produto não se adequaria
às expectativas, já que, independentemente da qualidade do livro ou DVD, o
consumidor tem plena consciência sobre seu ato de consumo.
Assim,
considerando a origem e o contexto histórico do instituto em discussão, não
deve ser garantido o direito de reflexão a todo e qualquer ato de consumo
realizado fora do estabelecimento físico, mas apenas nas hipóteses de assegurar
ao consumidor a aquisição consciente.
Relembre-se
que o arrependimento do art. 49 do CDC não se confunde com o da resolução do
contrato por vício de fornecimento (arts. 18, § 1º, II, 19 e 20 do CDC). O
direito de arrependimento, quando exercitável, não depende de qualquer
impropriedade no objeto, ainda que corresponda exatamente ao apresentado no
estabelecimento eletrônico. Se foi empregada técnica agressiva de venda, o
consumidor pode desistir da compra no prazo legal de reflexão.
Propostas legislativas
Três
projetos de lei (281, 282 e 283) em andamento no Senado Federal visam adaptar a
Lei 8.078/90 ao comércio eletrônico. Nessa linha, interessante trazer algumas
emendas propostas e apreciadas no parecer 243 de 2014 da Comissão Temporária de
Modernização do CDC, de relatoria do senador Ricardo Ferraço[3].
A
Emenda 25 do Senador Antônio Carlos Rodrigues dispôs sobre a inadmissão do
direito de arrependimento no comércio de produtos e serviços exclusivamente
digitais, que são entregues ou prestados eletronicamente. Ao rejeitar a
proposta, a justificativa da referida comissão não ocorreu pela sua
impertinência ou pelo entendimento de aplicação irrestrita do instituto ao
comércio eletrônico, mas sim porque tais questões deveriam ser deixadas “à
jurisprudência e às práticas comerciais hoje possíveis de limite temporal e de
vezes de utilização destes produtos e serviços, para que façam a adaptação
desse direito de arrependimento à realidade brasileira”.
Também
vale mencionar a emenda 26, do senador Antônio Carlos Rodrigues, que tentava
restringir o prazo de reflexão aos casos em que a natureza jurídica do contrato
não permitisse o consumidor exercer o direto, a exemplo do fornecimento de
alimentos e produtos personalizados. Tal direito seria antifuncional e até
mesmo abusivo. A comissão acolheu, em parte, esta emenda no que diz respeito a
limitar o direito de arrependimento em bilhetes aéreos.
Portanto,
o legislador reconheceu que não há como aplicar o direito de arrependimento a
todos os casos de comércio eletrônico. A título ilustrativo, mencionou-se a
igualdade do ato de aquisição de bilhete aéreo na loja física ou virtual da
companhia aérea. Na mesma linha, irrelevante a compra em estabelecimento físico
ou virtual de ingressos para eventos esportivos, culturais ou de
entretenimento, quando as informações essenciais estejam disponíveis.
Jurisprudência
Com
a delegação à jurisprudência sobre a incidência e efeitos do prazo de reflexão,
interessante trazermos alguns julgados de tribunais de Justiça estaduais. O
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, nos autos do processo
0002317-28.2012.8.07.0018[4], consignou que arrependimento não se traduz em
prerrogativa a assegurar o distrato imotivado do contrato, mas o direito de o
consumidor arrepender-se quando adquire bem ou serviço em situação que não lhe
permitira aferir com precisão e exatidão o que adquirira.
Tutela-se
o marketing agressivo, verificado geralmente fora do estabelecimento. No comércio
de passagens aéreas pela via eletrônica, estão resguardadas as mesmas condições
de aquisição se comparadas à contratação realizada no estabelecimento do
fornecedor, não havendo distinção substancial entre uma e outra modalidade de
contratação, a ponto de dificultar ou impossibilitar ao consumidor a aferição
precisa e exata do serviço contratado em relação as suas expectativas e
necessidades.
Desse
modo, essa modalidade de contratação não está inserida na órbita de incidência
do artigo 49 do CDC. No caso, o TJ-DFT anulou multa do Procon-DF, entendendo
ser equivocada a interpretação literal acerca do art. 49 do CDC.
O
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também já se manifestou neste sentido ao
julgar a Ação Civil pública 0040776-88.2010.8.19.0001[5]. Os desembargadores
afastaram o art. 49 do CDC por entenderen que a situação do comprador de
passagem aérea no estabelecimento comercial é idêntica à do comprador do mesmo
produto pela internet, pelo menos no que se refere ao conhecimento do que está
sendo adquirido. Assim, se o consumidor desiste da viagem, por conveniência
pessoal, não há o porquê se conferir a apenas àquele que comprou o bilhete pela
internet — e o fez até com mais comodidade e conforto — o direito ao reembolso
integral.
É
necessário compreender que a ratio do direito de arrependimento é a proteção do
consumidor diante de sua vulnerabilidade no ato de consumo. No caso deste ato
ocorrer pela internet, dever-se-á analisar se houve emprego de técnicas de
marketing agressivo e se o contato imediato com o bem da vida pretendido
influenciaria nas expectativas e necessidades do consumidor.
Portanto,
a interpretação evolutiva do instituto às novas realidades do direito
cibernético deve estar atenta ao ato de consumo, verificando se, in concreto,
há diferença substancial entre as modalidades de contratação (loja física ou
virtual) e se há vulnerabilidade do consumidor. Em caso negativo, estaremos
diante do exercício abusivo do direito de arrependimento, conduta violadora da
função social dos contratos e da boa fé objetiva (art. 4º, inciso III do CDC e
arts. 113, 187, 421 e 422 do CC/02).
[1] O espírito jurídico que
inspirou determinado instituto, o qual deve ser considerado por todo aquele que
procure esclarecer o texto legal respectivo.
[2] A circunstância de fato
que ensejou a criação da lei.
[3] http://www.senado.leg.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=148162&tp=1;
http://www.senado.leg.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106768,
acessados em 01/02/2015.
[4] TJ-DFT. 0002317-28.2012.8.07.0018.
1ª Turma Cível. Relator: Teófilo Caetano. 05/05/2014.
[5] TJ-RJ.
0069072-96.2005.8.19.0001. Apelação. 7ª Câmara Cível. Desembargadora Maria
Henriqueta do Amaral Fonseca Lobo. 13/02/2009. Neste sentido
0164391-13.2013.8.19.0001 - Turmas Recursais. Relator: João Luiz Ferraz de
Oliveira Lima. 03/12/2013.0040776-88.2010.8.19.0001 – Apelação. 16ª Câmara
Cível. Marco Aurélio Bezerra de Melo - 01/03/2013.
Por
Felipe Caputti
Fonte
Consultor Jurídico