Vi,
numa das insones madrugadas de quem já não precisa muito dormir, um espetáculo
emocionante: um jovem, privado das duas pernas a partir dos joelhos, fez seu
primeiro salto de paraquedas acrobático, aquele em que a criatura,
praticamente, voa, abrindo uma espécie de asa na proximidade com o solo. O
moço, na rua, se locomove sobre “skate”. Estava acompanhado, no pulo, por um
outro paraquedista, certamente seu instrutor e conhecidíssimo, pois faz
misérias no espaço. Aquilo ficou na cabeça do velho criminalista, significando
a capacidade enorme que o ser humano tem de superar dificuldades imensas na
sobrevivência.
Dias
depois, o respeitadíssimo site ConJur divulgou decisão do presidente do Supremo
Tribunal Federal sobre petição em que a advogada cega Deborah Maria Prates
Barbosa, do Rio de Janeiro, protestava contra as restrições existentes no
peticionamento eletrônico da Suprema Corte em hipóteses tais, pois os cegos
precisam de navegadores especiais para chegarem à corte. A colega explica o que
é um leitor de tela para deficiente visual: é um programa que interpreta os
conteúdos do código e os apresenta através de um sintetizador de voz ou
impresso em Braille. Na realidade, segundo a petição levada ao CNJ, o programa
“não lê a tela, mas o código por trás dela, interpretando os elementos e
atributos sequencialmente conforme sua leitura, de cima para baixo e da
esquerda para a direita”.
O
pedido foi liminarmente indeferido por Barbosa. Este, todos sabem, preside o
Supremo e o Conselho Nacional de Justiça. A justificativa é seca: a necessidade
de terceiros ajudarem a advogada a enviar petição eletrônica aos tribunais, em
razão da inacessibilidade do sistema para deficiente visuais, não configura o
perigo de dano irreparável ou de difícil reparação. Além disso, já há outro
pedido de providencias tramitando, havendo necessidade de prevenir decisões
eventualmente conflitantes.
Fundamentava-se
a peticionária na Lei 10.098, de 19 de dezembro de 2000, estabelecendo “normas
gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas
portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida e dá outras providências”.
Tal legislação, com certeza absoluta, ampara a reivindicante. Entretanto, a
decisão do ministro presidente, no fim das contas, nega vigência aos
dispositivos postos naquele diploma.
A
situação é muito mais séria que o aspecto exibido individualmente por uma cega.
Citei, no início, o rapaz que desafiou os ares e ventos, embora desprovido das
pernas que, seguramente, constituem, no chão ou nas nuvens, seguro fator de
equilíbrio corporal. Vi outro dia, também em noite mal dormida, embora só
assombrada por injustiças cometidas por um ou outro juiz, imagens de um
alpinista cego vencendo o Everest. Um dos maiores cantores que o mundo moderno
tem, Andrea Bocelli, não vê centímetro adiante do nariz, mas encanta milhões.
Dentro do contexto, o ministro presidente do Conselho Nacional de Justiça, em
termos hebraicos, significa uma oposição temporária. É “pixulé” (gosto da
expressão). Foi-me ensinada por um sábio mercador da rua São Caetano, em São
Paulo, o Simão Werner. Quando me vê nervoso ou irritado, diz: “Dr. Paulinho, é
pixulé”. A ressonância maior compondo a petição da doutora Deborah abrange
aspectos circunvizinhos constitutivos de antiga reclamação minha, não fosse
pela OAB, mais suave e elegante por certo, mas assemelhadamente insistente: em
suma, numa das vezes em que estive a sustentar em um dos dois mais altos
tribunais do país, vi um advogado cego sustentando muitíssimo bem problema
criminal delicadíssimo. Foi praticamente carregado até a tribuna, porque ali
não há os requisitos básicos exigidos na mesma lei citada para auxílio a deficientes
iguais ou assemelhados. Viu-se que o colega, experiente e bem preparado, sabia,
inclusive, no espaço, a posição de cada um dos Ministros, encarando (a
expressão é esta) cada qual, embora não os visse. De outra parte, a capacidade
de concentração de ser humano privado da visão é muito maior que a nossa,
justificando-se, aqui, a remissão a Andrea Bocelli, cantor internacional que
sequer, em público, consulta a pauta em Braille (existe isso). É magnífico, mas
melhor seria que a Suprema Corte oferecesse, porque obrigada a tanto, meios a
que um cadeirante pudesse chegar à tribuna sem ser carregado aos trancos, ou
mesmo se apoiando, o cego, em um cão especializado. Dizem que cães não pensam.
Há cachorros destinados a tarefas absolutamente particulares, mais sofisticadas
que conduzir um advogado cego à Suprema Corte. Permeando a seriedade do texto e
para não se dizer que sou agressivo em demasia, é possível, até, em certas
circunstâncias, que o fidelíssimo animal, percebendo o levantamento do tom de
voz do orador, lhe dê um cutucão nas pernas, advertindo-o a moderar a oratória.
Parece brincadeira. Não é. Já vi isso na confusão do metrô paulista. De
qualquer forma, é lei vigendo a ser obedecida como premissa no tribunal que,
por força da sua relevância, diz predominantemente o direito no Brasil.
Não
é só. Lei federal em pleno vigor garante ao advogado o direito de falar nos
tribunais, sentado ou em pé, conforme lhe aprouver. O Supremo Tribunal Federal
nega isso a setecentos mil advogados. Anterior presidente da Suprema Corte, o
ministro Peluso, compungidamente, explicou-me, em manuscrito, que o mobiliário
do Supremo Tribunal Federal era tombado, impedindo-se então, segundo a
administração, mudança adequada a que os defensores pudessem tomar assento. Não
se há de exibir o escrito, por respeito, inclusive, à intimidade da comunicação
entre este velho criminalista e um dos melhores presidentes que a Suprema Corte
teve. Mas é isso. A lei federal exige uma cadeira para que o advogado, à
tribuna, possa descansar o corpo. A OAB vai obter tal consequência, certamente,
correndo-se o risco, em se omitindo, de alguém o exigir a título de questão
prévia a sustentação oral, constrangendo-se todos, sem exceção do ministro
presidente e do procurador geral da República, este último comodamente posto à
direita da presidência e em assento acolchoado.
Entenda-se,
ao fim, o relevo da reclamação concretizada pela advogada cega. É aquilo e
muito mais. Sobra-me, quase decano da advocacia criminal paulista, o resmungo
rude, notando-se que o Supremo Tribunal Federal se abriu ao povo, havendo então
a recíproca. Vai o escrito a todos os meios de comunicação possíveis, com
predominância do site Consultor Jurídico. Este é, seguramente, garantia certa
de chegança à Suprema Corte.
Por
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Fonte
Consultor Jurídico