quarta-feira, 2 de julho de 2014

RECONHECIMENTO E HOMOLOGAÇÃO DE DECISÕES ESTRANGEIRAS


O pronunciamento que se quer ver produzir efeitos em nosso país caracteriza-se como uma sentença estrangeira, segundo a lei brasileira, quando emanado de uma entidade soberana alienígena, ou, ainda, quando produzido por particulares conforme o ordenamento estrangeiro, cujo conteúdo, no Brasil, seria próprio de uma sentença ou de atos a ela assimilados[1]. Nesse sentido, são exemplos de sentença estrangeira o contrato de adoção celebrado no exterior e os atos elencados como títulos executivos judiciais pelo artigo 475 do Código de Processo Civil, quando provenientes do exterior[2].
A Corte Internacional de Justiça não profere decisão que se subsuma ao conceito de sentença estrangeira que requeira qualquer tipo de exequatur ou homologação, visto tratar-se de órgão supranacional. A sentença internacional deve ser cumprida espontaneamente pelo Estado e, em caso de recusa, sua execução deve ser pleiteada no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (STJ SEC 2.707).
Já a determinação da internacionalidade ou não de sentença arbitral, para fins de reconhecimento, fica ao alvedrio das legislações nacionais, conforme o disposto no artigo 1º da Convenção de Nova York (1958), promulgada pelo Brasil, por meio do Decreto 4.311/2002, razão pela qual se vislumbra no cenário internacional diferentes regulamentações jurídicas acerca do conceito de sentença arbitral estrangeira. No ordenamento jurídico brasileiro, elegeu-se o critério geográfico (ius solis) para determinação da nacionalidade das sentenças arbitrais, baseando-se exclusivamente no local onde a decisão for proferida (artigo 34, parágrafo único, da Lei  9.307/1996). O fato de o requerimento para instauração do procedimento arbitral ter sido apresentado à Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional não tem o condão de alterar a nacionalidade da sentença arbitral proferida no território brasileiro (STJ REsp 1.231.554).
Entre vários modelos[3], desponta, na doutrina, a seguinte classificação quanto à recepção de sentenças estrangeiras: a) o sistema da actio judicati, em que não se reconhece a decisão estrangeira como tal, mas como prova para que o beneficiado pelo ato jurisdicional proponha nova ação naquele país; b) o sistema de exequatur, em que o pronunciamento jurisdicional é recepcionado propriamente como sentença, de modo a produzir efeitos em sua integralidade, sem que novo mandamento seja produzido no Estado onde se pretende executá-lo[4].
Quanto à (g.1) motivação para a concessão, o sistema de exequatur subdivide-se em: (g.1.1) sistema de exequatur por vontade, em que é dado ao Estado negar a execução do ato por decisão absolutamente subjetiva, não obrigatoriamente motivada; e (g.1.2) sistema de exequatur por delibação, em que a recepção depende apenas da observância de alguns requisitos e da não interferência em garantias processuais e princípios gerais de seu ordenamento, sem que haja análise de fundo sobre o bem da vida posto em julgamento. Relativamente à (g.2) profundidade de análise da decisão estrangeira, o sistema de exequatur subdivide-se em: (g.2.1) sistema de exequatur por revisão do mérito, em que a decisão estrangeira produz efeitos desde que observada a aplicação da lei do Estado em cujo território a sentença irá produzir efeitos, o que se dá após ampla revisão da causa; e, novamente, (g.2.2) sistema de exequatur por delibação, em que a observância da ordem pública e alguns outros requisitos é suficiente para o reconhecimento e a execução da sentença estrangeira.
O sistema de exequatur por delibação compreende as duas espécies de confirmação necessárias para a execução de atos estrangeiros: 1º) o exequatur propriamente dito, materializado mediante carta rogatória, nas hipóteses de execução de decisões alienígenas interlocutórias, de caráter não definitivas; e 2º) a homologação, materializada mediante ação própria, nas hipóteses de execução de atos jurisdicionais não sujeitos a recurso, que encerram definitivamente o litígio[5]. A carta rogatória é, ao menos em princípio, simples instrumento de comunicação de atos processuais lavrado no bojo do processo em curso no Estado requerente. Por outro lado, a homologação de sentença estrangeira é, em nosso ordenamento, objeto de uma ação.
As questões alusivas à delibação do ato jurisdicional estrangeiro são de mérito, e não de admissibilidade, sendo o processo de homologação de sentença estrangeira tipicamente contencioso, no qual se admite, inclusive, a tutela de urgência (STJ SE 10.250). Pode ser proposto por qualquer pessoa interessada nos efeitos da sentença estrangeira. O Ministério Público deve se manifestar na homologação e no exequatur. O valor da causa é o da condenação imposta pela decisão alienígena (STJ AgR-Pet 5.363)[6]. Já a prova do trânsito em julgado de sentença estrangeira é matéria processual, que varia em cada país, não se podendo exigir a mesma forma do direito brasileiro (STJ SEC 563). Ressalte-se que o trâmite de processo semelhante na Justiça brasileira não inviabiliza a homologação da sentença estrangeira (STJ SEC 6.069)[7], mas não se homologa sentença estrangeiraenvolvendo questão já decidida pela Justiça brasileira, pouco importando a circunstância de o pronunciamento não haver feito coisa julgada (STJ SEC 819).
A sentença estrangeira encontra-se apta à homologação quando atendidos todos os requisitos previstos nos artigos 5º e 6º da Resolução  9, de 4 de maio de 2005, do Superior Tribunal de Justiça: a) prolação por autoridade competente; b) terem sido as partes citadas, seja no território prolator da decisão, seja no Brasil, mediante carta rogatória, ou haver-se legalmente verificado a revelia; c) trânsito em julgado; d) encaminhamento pela via diplomática ou chancela consular brasileira acompanhada de tradução por tradutor oficial ou juramentado; e) ausência de ofensa à soberania nacional ou à ordem pública.
O Superior orienta-se no sentido de não haver ofensa à soberania nacional[8] ou à ordem pública na homologação de sentença estrangeira proferida em processos de jurisdição voluntária de confirmação de testamento ou de dissolução de sociedade conjugal que disponham acerca de bens imóveis situados no Brasil. A exclusividade da competência brasileira, prevista no artigo 89, inciso II, do Código de Processo Civil, se dá apenas e tão somente nos casos de inventário e partilha (actio familiae erciscundae) em que não houver composição entre as partes ou em havendo acordo, restar dúvida quanto à sua consonância com a legislação pátria (STJ SEC 4.913). Sem o acordo prévio a jurisprudência considera inviável a homologação (STJ SEC 5822).
A doutrina propõe uma distinção quadripartite relativamente ao conceito de ordem pública: a) a ordem pública de primeiro grau seria aquela composta por normas composta por normas de direito interno e que não podem ser afastadas pelas partes (artigos 122 e 606 do Código Civil); b) a ordem pública de segundo grau seria a que impede a aplicação de leis estrangeiras indicadas pelas regras de conexão do direito internacional privado (artigo 17 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro); c) a ordem pública de terceiro grau, por fim, consistiria na proteção do ordenamento contra atos e decisões estrangeiros que reconhecem direitos em casos concretos (artigo 6º da Resolução 9, de 4 de maio de 2005, do Superior Tribunal de Justiça); d) a ordem pública de quarto grau, por fim, determinaria obrigações às soberanias que compõem a comunidade internacional[9].
A ação de homologação de sentença estrangeira produz efeito de coisa julgada, sendo possível sua desconstituição mediante ação rescisória. Nesse caso, a ação rescisória visa desconstituir apenas a sentença de homologação, e não a sentença estrangeira homologada, que não é rescindível pela justiça brasileira. Registre-se, contudo, a existência de sentenças estrangeiras que sequer precisam ser homologadas, porquanto geram efeitos atípicos. É o caso das que servem como prova documental de um fato; como norma, produzindo efeitos gerais e abstratos; como título, autorizando o exercício de um direito ou a propositura de uma ação; ou das que possuem efeitos que não são próprios das nacionais, como ocorre com a sentença estrangeira condenatória por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira. Também constitui exceção à obrigatoriedade de homologação das sentenças estrangeiras a previsão constante na Convenção Interamericana sobre Obrigação Alimentar (1989), promulgada pelo Decreto 2.428/1997, segundo a qual as sentenças estrangeiras sobre obrigação alimentar terão eficácia extraterritorial nos Estados Partes, uma vez preenchidos todos os requisitos os documentos de comprovação indispensáveis para a solicitação de seu cumprimento.
O reconhecimento não deve ser confundido com a homologação da sentença estrangeira. Havendo a homologação, haverá o reconhecimento da sentença estrangeira, mas a recíproca não é verdadeira. O reconhecimento pode decorrer apenas da lei (artigo 15 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro); outorgado por ato administrativo, como ocorre nos casos de transferência de condenados (STJ SE 5.269); ou consubstanciado em uma decisão judicial, a título de homologação, nas hipóteses do artigo 483 do Código de Processo Civil[10].

1] PEREIRA, Marcela Harumi Takahashi. Dos casos em que é desnecessário homologar uma sentença estrangeira. In: Revista de Informação Legislativa, ano 46 n. 184 out./dez. 2009, pp. 48-49.
[2] PEREIRA, Dos casos…, p. 48.
[3] BELTRAME, Adriana. Reconhecimento de sentenças estrangeiras. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 50 e pp. 63-66
[4] SOARES, Boni de Moraes. Juízo de prelibação no direito processual internacional. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília. 2010. 222 f, pp. 54 e seguintes.
[5] SOARES, Juízo de prelibação... p. 59.
[6] O fato de a sentença estrangeira conter condenação em moeda estrangeira não fere o artigo 318 do Código Civil ou o Decreto-lei  857/1969, e não impede a homologação. Ao interessado caberá, no momento próprio, durante a execução da sentença estrangeira no Brasil, postular o que for de direito a respeito da conversão da moeda estrangeira em reais (STJ SEC 6069).
[7] Nesse sentido, já se decidiu que o simples ajuizamento de ação revisional no Brasil em relação à guarda, ao regime de visitas e aos alimentos fixados, por si, não inviabiliza o processamento do pedido de homologação de sentença estrangeira que cuida dos mesmos temas (STJ SEC 5597).
[8] Tome-se como exemplo de ofensa à soberania nacional eventual cabimento de homologação de sentença estrangeira que obsta a instauração ou o prosseguimento de qualquer ação executiva contra o falido, porquanto restringe a jurisdição brasileira (STJ SEC 1735).
[9] SOARES, Juízo de prelibação... pp. 76-79.
[10] PEREIRA, Dos casos…, p. 51.

Por Aldo de Campos Costa
Fonte Consultor Jurídico