Mesmo
após mais de 20 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor, muitos
aspectos do dia a dia das relações de consumo ainda despertam controvérsias e
embates entre fornecedores e os órgãos de proteção. Dentre eles, destaca-se a
possibilidade ou não de cobrança de preços diferenciados (com descontos ou
sobretaxas) de acordo com a forma de pagamento, em especial o cartão de
crédito.
Essa
prática, comum no comércio tradicional, costuma se dar de forma contida,
revelando-se apenas quando o próprio consumidor toma a iniciativa de, ao pagar
através de instrumento mais vantajoso para o comerciante, solicitar desconto em
relação ao preço tabelado. Com a popularização do comércio eletrônico,
tornou-se possível vislumbrá-la manifestamente, já que muitas lojas
preestabelecem abatimentos ou acréscimos conforme a opção de pagamento do
consumidor.
Por
vislumbrar prejuízo ao elo mais fraco da relação, os órgãos de proteção ao
consumidor têm combatido veementemente este tipo de desconto, sendo comuns
autuações do Ministério Público contra empresas que habitualmente oferecem
preços diferenciados ao comprador que paga, por exemplo, em dinheiro.
Inobstante seja este o entendimento que hoje prevalece, pretende-se aqui fazer
uma análise crítica dos seus fundamentos, a fim de que se conclua se há ou não
o alegado dano ao consumidor.
As
autuações ministeriais têm como base direta normas infralegais, em especial a
Portaria 118/94 do Ministério da Fazenda[1] e a Resolução 34/1989 do Conselho
Nacional de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça[2]:
PORTARIA 118/94 DO
MINISTÉRIO DA FAZENDA:
Artigo 1º Dispensar a
obrigatoriedade da expressão de valores em cruzeiro real nas faturas,
duplicatas e carnês emitidos por estabelecimentos industriais, comerciais e de
prestação de serviços, representativos de suas vendas a prazo, inclusive para
serem liquidados com prazo inferior a trinta dias, observado o seguinte: (...)
Parágrafo único. O disposto
neste artigo aplica-se também às faturas emitidas por empresas administradoras
de cartões de crédito, caso em que:
I - não poderá haver
diferença de preços entre transações efetuadas com o uso do cartão de crédito e
as que são em cheque ou dinheiro; e,
II - os comprovantes de
venda são expressos em URV. (grifou-se)
RESOLUÇÃO 34/89 DO CNDC –
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA:
(...) RESOLVE: Considerar
irregular todo acréscimo ao preço de mercadoria nas compras feitas com cartão
de crédito (...).
É
preciso salientar, em sentido diverso, que estes normativos foram exarados em
período econômico conturbado, de inflação descontrolada, no qual houve sabido
exagero na intervenção estatal sobre os preços praticados no comércio. Ademais,
seu caráter vinculativo é bastante questionável, por consistirem em atos do
Poder Executivo que não se prestam a criar vedações não previstas em lei. Para
cumprir o requisito da legalidade (vide artigo 5º, II, da Constituição
Federal), sua aplicação costuma ser acompanhada dos artigos 39, V e X, do
Código de Defesa do Consumidor, que proíbem a exigência de vantagem manifestamente
excessiva e a elevação sem justa causa de preços, respectivamente. Impende,
pois, discutir se o preço diferenciado conforme a forma de pagamento infringe
ou não a lei consumerista.
Sobre
o tema, destaque-se julgado do Superior Tribunal de Justiça que ponderou os
ônus e bônus da venda mediante cartão de crédito para os estabelecimentos
comerciais, concluiu pela impossibilidade da prática de preços diferenciados
conforme o meio de pagamento e servirá como base desta análise:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO
COLETIVA DE CONSUMO - COBRANÇA DE PREÇOS DIFERENCIADOS PRA VENDA DE COMBUSTÍVEL
EM DINHEIRO, CHEQUE E CARTÃO DE CRÉDITO - PRÁTICA DE CONSUMO ABUSIVA -
VERIFICAÇÃO - RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
I - Não se deve olvidar que
o pagamento por meio de cartão de crédito garante ao estabelecimento comercial
o efetivo adimplemento, já que, como visto, a administradora do cartão se
responsabiliza integralmente pela compra do consumidor, assumindo o risco de
crédito, bem como de eventual fraude;
II - O consumidor, ao
efetuar o pagamento por meio de cartão de crédito (que só se dará a partir da
autorização da emissora), exonera-se, de imediato, de qualquer obrigação ou
vinculação perante o fornecedor, que deverá conferir àquele plena quitação.
Está-se, portanto, diante de uma forma de pagamento à vista e, ainda, pro
soluto" (que enseja a imediata extinção da obrigação);
III - O custo pela
disponibilização de pagamento por meio do cartão de crédito é inerente à
própria atividade econômica desenvolvida pelo empresário, destinada à obtenção
de lucro, em nada referindo-se ao preço de venda do produto final. Imputar mais
este custo ao consumidor equivaleria a atribuir a este a divisão de gastos
advindos do próprio risco do negócio (de responsabilidade exclusiva do
empresário), o que, além de refugir da razoabilidade, destoa dos ditames
legais, em especial do sistema protecionista do consumidor;
IV - O consumidor, pela
utilização do cartão de crédito, já paga à administradora e emissora do cartão
de crédito taxa por este serviço (taxa de administração). Atribuir-lhe ainda o
custo pela disponibilização de pagamento por meio de cartão de crédito,
responsabilidade exclusiva do empresário, importa em onerá-lo duplamente (in
bis idem) e, por isso, em prática de consumo que se revela abusiva;
V - Recurso Especial
provido. (STJ — RESP 1.133.410 — 3ª Turma — Min. Rel. Massami Uyeda — Julgado
em 16/03/2010)
O
primeiro aspecto abordado pelos doutos ministros é o da garantia do
adimplemento, pela administradora, presente nos pagamentos via cartão de
crédito. Esta diferenciação, contudo, cabe apenas em relação ao cheque; o
pagamento em dinheiro, por óbvio, também não enseja riscos neste sentido, pelo
que referido argumento não se sustentaria.
Prossegue
a 3ª Turma do STJ afirmando que o pagamento por cartão de crédito é à vista,
como aquele realizado em pecúnia, por desobrigar imediatamente o consumidor. A
relação subsistente seria a do estabelecimento com a administradora dos cartões,
vínculo este que não poderia interferir prejudicialmente na obrigação
consumerista.
Para
contextualizar: o debate acerca deste tópico se sustenta em razão do prazo (de
30 dias, normalmente) estabelecido pelas operadoras de cartão de crédito para a
devida quitação ao estabelecimento comercial, o que faz os lojistas tratarem,
erroneamente, o cartão de crédito como uma forma de pagamento a prazo. Assim,
estaria justificada a cobrança diferenciada de preços, segundo a ótica do
fornecedor.
Embora
se concorde com o fato de que o uso do cartão de crédito proporciona pagamento
à vista, e não a prazo, o argumento não serve para deslegitimar a
diferenciação. É que o meio de pagamento utilizado pelo consumidor implica em
custos (em específico, a demora no recebimento da verba) diferentes para o
lojista, mesmo que ambos sejam considerados pagamentos à vista. Discute-se,
portanto, não o caráter do pagamento, mas sim o ônus de sua utilização para o
estabelecimento. Com isso, deve-se reconhecer o erro na justificativa dos
fornecedores, mas também que este erro não macula o mérito da questão.
Aborda-se
em seguida o custo pela disponibilização do cartão de crédito como meio de
pagamento, que seria inerente à atividade econômica e, por isso, não poderia
ser repassado ao consumidor, outro argumento que não se sustenta. Neste
aspecto, é preciso diferenciar eventual despesa do estabelecimento com a oferta
deste meio de pagamento daquela decorrente da própria compra via cartão de
crédito, com a cobrança de uma taxa sobre o valor da transação.
Para
o primeiro caso, imagine-se que o lojista paga um valor mensal para a
operadora, de forma a viabilizar em seu estabelecimento o uso de determinado
cartão de crédito. Aqui, o benefício aos consumidores não é específico nem
divisível, visto que não há como mensurar o quanto cada consumidor do
estabelecimento terá de vantagem com isto. Neste cenário, o STJ estaria com a
razão ao concluir que o custo do comerciante é inerente à atividade, sendo
vedado dividi-lo com o consumidor.
Porém,
para a segunda hipótese, é evidente que o custo com a taxa da operadora está
intrinsecamente ligado ao fato de se estabelecer compra via cartão de crédito,
pois ele não existiria caso o consumidor optasse pelo pagamento em dinheiro. É
serviço específico (permissão de pagamento através de cartão) e divisível (o
custo decorre de determinada compra), não havendo motivo para que não possa ser
cobrado em separado.
Faça-se
um paralelo com o serviço de estacionamento disponibilizado por muitas lojas.
Caso haja segurança específica para o estacionamento, o salário dos
funcionários responsáveis certamente comporá o custo do negócio, e não poderá
ser repassado diretamente ao consumidor. Ele será um dos fatores a influir no
preço das mercadorias, ainda que a parcela respectiva no preço de cada compra
não possa ser medida em termos exatos. Contudo, caso o consumidor efetivamente
faça uso do estacionamento, será possível estabelecer objetivamente um custo de
utilização, pelo que nada impedirá a cobrança de uma taxa específica do
serviço, até por não ser justo que todos, inclusive os que não possuem veículo,
arquem indistintamente com as despesas do estacionamento. O mesmo raciocínio é
válido para a denominada “taxa de serviço” (gorjeta), cobrada por muitos
estabelecimentos e que não costuma ser questionada pelos órgãos de defesa do
consumidor.
Continuando
sob a ótica econômica, é oportuno citar nota técnica do Banco Central do Brasil
publicada em 2010[3], na qual se conclui que as famílias de baixa renda (cujo
instrumento primordial para pagamento é o dinheiro) financiam compras dos
usuários de alta renda, principais portadores do cartão de crédito, no chamado
subsídio cruzado. A proibição à cobrança diferenciada (no surcharge rule)
consiste, portanto, em verdadeiro programa de transferência de renda das
camadas populares para as mais nobres.
Estudo
do Ministério da Fazenda[4], por sua vez, cita que a falta de diferenciação de
preços: reduz a concorrência entre as administradoras de cartão (pois não há
vantagem direta em cobrar taxas menores do lojista, já que este não tem como
favorecer as operadoras cujas tarifas são mais baixas); e ainda evita que o
próprio consumidor se porte como agente de pressão sobre o preço das tarifas,
visto que os custos de cada meio de pagamento (e de cada operadora) não lhe são
transparentes e, pior, lhe são indiferentes. Por conta disso, a opção do
consumidor por um meio ou um cartão específico passa a ser feita considerando
sempre fatores externos, que não o preço pago.
Também
é explicitado neste estudo um importante fator político para que o Poder
Executivo deseje a proibição da cobrança diferenciada (relembre-se que as
restrições hoje vigentes são oriundas deste Poder): o uso do cartão de crédito
é uma ferramenta das autoridades para a fiscalização tributária tanto do
lojista, quanto do consumidor. Enquanto este torna possível o rastreamento dos
seus gastos, aquele vê registradas as origens dos seus ganhos, de forma que é
interessante para os órgãos governamentais que a população sinta-se estimulada
a utilizar o cartão de crédito (e a manutenção dos preços independentemente do
meio de pagamento utilizado é um belo motivo para tanto). Ainda no âmbito
político, deve-se ter em consideração que as operadoras de cartão de crédito,
em sua maioria empresas globais, possuem força suficiente para pressionar o
Estado a manter situação que as beneficie.
Voltando
ao acórdão exarado pelo STJ, tem-se como último argumento a tese de que o
consumidor não poderia ser onerado duas vezes pelo uso do cartão de crédito, o
que ocorreria caso lhe fosse cobrada a taxa de administração (independente do
uso) e ainda uma taxa no preço (esta oriunda da utilização do cartão).
Quanto
a isso, observa-se, data venia, que a Corte Superior contradiz-se com o que
expõe no próprio acórdão em debate. No decorrer da decisão, faz-se
diferenciação entre a relação estabelecida entre o lojista e o consumidor e o
liame entre este e a administradora de cartões para concluir que um vínculo não
poderia influenciar negativamente o outro. Contudo, proibir o estabelecimento
de praticar preços diferenciados por considerar que o consumidor já foi onerado
pela taxa de administração consiste exatamente numa mistura indevida entre
estas duas relações distintas. Além disso, em muitos casos não há a cobrança de
taxa de administração pela operadora, notadamente quando os gastos do usuário
são elevados, o que só aumenta o problema do subsídio cruzado já relatado.
Da
análise do tema sob aspectos legais, concorrenciais, econômicos e até
políticos, vislumbra-se que, ao contrário do que foi compreendido pelo Superior
Tribunal de Justiça, o consumidor e os comerciantes são os maiores prejudicados
diante da “proibição” à precificação de acordo com o meio de pagamento
utilizado, enquanto são beneficiados outros agentes, como o Estado e as
operadoras de cartão de crédito. Posto isso, não há qualquer ilegalidade na
prática, embora a sua regulamentação legal se faça necessária, haja vista a
jurisprudência contrária e a insistência dos órgãos de proteção em —
equivocadamente — combatê-la.
[1] Disponível em: http://sijut.fazenda.gov.br/netacgi/nph-brs?s1=P0000001181994031101$.CHAT.+E+MF.ORGA.+E+19940314.DDOU.&l=0&p=1&u=/netahtml/sijut/Pesquisa.htm&r=0&f=S&d=SIAT&SECT1=SIATW3
[2] Disponível em: http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={C018B222-9863-4A5D-9F94-04DF13384D89}&ServiceInstUID={7C3D5342-485C-4944-BA65-5EBCD81ADCD4}
[3] Disponível em: http://www.bcb.gov.br/htms/spb/Relatorio_Cartoes_Adendo_2010.pdf
[4] Disponível em: http://www.senado.gov.br/comissoes/cct/ap/AP20080527_MinisteriodaFazenda_CartoesdeCredito.pdf
Por
Victor Sampaio Gondim
Fonte
Consultor Jurídico