O Direito Digital é
a interpretação do próprio Direito, levando em consideração o contexto digital
e os seus impactos numa sociedade altamente conectada
Enquanto os indivíduos caminham para uma
realidade cada vez mais digital, surgem novos desafios jurídicos que precisam
ser solucionados, e o Direito deve possuir os elementos necessários para isso.
O Direito Digital, então, pode ser entendido
como a interpretação do próprio Direito, levando em consideração o contexto
digital e os seus impactos numa sociedade altamente conectada.
Mas será que estamos
preparados juridicamente para viver no mundo digital?
As inovações tecnológicas trouxeram mudanças
significativas na dinâmica da sociedade e no modo como os indivíduos se
relacionam, consomem produtos e serviços, fazem negócios e contratam.
Todos esses dados gerados pelos indivíduos,
enquanto cidadãos digitais, já estão sendo cogitados como a moeda do futuro, o
maior ativo de qualquer negócio.
Surgem, então, diversas questões
desafiadoras para os operadores do Direito, que extrapolam o campo da inovação,
tecnologia e privacidade na troca desses dados.
Partimos para uma discussão ainda maior, de
cunho até sociológico, já que nossa vida social e dia a dia estão sendo impactados
por uma matriz diferente da que estamos acostumados.
Biotecnologia, neuroimplantes, transplantes
de órgãos impressos em impressoras 3D, biohacking, guerras e ataques virtuais,
carros autônomos, nova economia e sua tributação são alguns exemplos de temas
que o Direito Digital deve enfrentar com mais profundidade daqui pra frente.
É claro que a velocidade das transformações
tecnológicas e as incontáveis - e imprevisíveis - situações do cotidiano
digital são muito superiores à capacidade do Estado de criar novas leis.
O mundo está cada vez mais conectado e o
Direito Digital serve para trazer elementos que possibilitem o pensamento
jurídico e o enfrentamento dessas novas situações.
O que é Direito
Digital?
“Direito digital é a evolução do próprio
Direito, abrangendo todos os princípios fundamentais que estão vigentes e são
aplicados até hoje, assim como introduzindo novos institutos e elementos para o
pensamento jurídico, em todas as suas áreas”.
Essa é uma das mais utilizadas definições do
Direito Digital. Peguei ela emprestada da advogada Patrícia Peck Pinheiro,
referência no Brasil sobre o assunto, além de autora de um dos primeiros livros
sobre Direito e Tecnologia na Língua Portuguesa.
O Direito Digital, portanto, é a
interpretação da atual matriz jurídica levando em consideração os impactos de
uma sociedade digital e altamente conectada.
Neste cenário atual, onde a prova é
eletrônica e a testemunha, muitas vezes, é a própria máquina, compreender as
questões legais que envolvem o mundo online não é mais uma opção, mas uma
necessidade urgente.
Precisamos entender que a sociedade caminha
cada vez mais para uma realidade totalmente virtual, fazendo surgir novos
desafios que precisam ser enfrentados e resolvidos.
Temas como dados do usuário, privacidade,
liberdade de expressão, comércio eletrônico, responsabilidade civil na
internet, segurança da informação e tributação digital estão cada vez mais em
pauta, interligando todas as esferas jurídicas e exigindo do Direito novos
pensamentos e aplicações.
O Direito deve caminhar no mesmo sentido e
propor regras que sejam capazes de regulamentar os impactos da tecnologia em
todas as esferas das relações humanas, sejam elas comportamentais, políticas,
contratuais, financeiras ou tributárias.
Por que o Direito
Digital é tão importante?
A internet é uma rede incrível de servidores
e computadores interconectados que direcionam as solicitações do navegador da
web através de uma rede de conexões com e sem fio, mas apenas uma pequena
porcentagem de pessoas no mundo - incluindo estudantes - realmente entende
quais são esses processos.
Menos ainda entendem como esses processos
funcionam.
Não bastasse isso, é fato que a maioria das
pessoas simplesmente não acompanha as leis e regulamentos em constante mudança.
Por exemplo, tente lembrar quantas vezes
você leu os termos de uso de alguma plataforma que você utiliza ou a política
de privacidade de algum App.
Pelo menos no senso comum, é perfeitamente
normal baixar músicas gratuitamente em algum site da internet ou encontrar algum
livro disponível para download em PDF.
Aliás, é possível que todos tenhamos feito
isso em algum momento da vida.
Há pessoas que sequer imaginam que estão
infringindo alguma lei ou simplesmente não sabem o que é o uso apropriado da
tecnologia. Por outro lado, existem pessoas que sabem exatamente o que estão
fazendo e criam sites ilegais para compartilhamento de arquivos, violam
direitos autorais, espalham malwares, divulgam informações falsas, invadem
redes ou sistemas com objetivo de prejudicar outras pessoas.
Essas práticas são cada vez mais comuns e
exigem leis que protejam direitos e também punam aqueles que violam esses
direitos.
Mas não se engane, isso vai muito além da
esfera criminal. Existem também diversas outras questões que precisam de
regulamentação e interpretações específicas para que o uso da internet seja
cada vez mais seguro, ético e justo, como as questões contratuais,
consumeristas e tributárias.
Por exemplo, a economia digital está muito à
frente do que temos hoje consolidado em termos de leis e precedentes. Ou seja,
estamos trabalhando questões inovadoras e disruptivas com leis e precedentes
antigos e obsoletos.
A tributação de softwares em um processo que
chegou no STF há quase 30 anos já não reflete mais a atual situação do mercado,
até porque já avançamos para o Software as a Service - Saas.
Nas palavras de Patrícia Peck:
“… o Direito Digital
deixou de ser entendido como uma disciplina vertical, aquele Direito de
Informática, de Tecnologia ou Cibernético, para se tornar o Direito como um
todo, de uma Sociedade Digital. Por isso, ficou horizontal, transversal e
engloba todas as disciplinas do Direito: civil, criminal, contratual,
tributário, de propriedade intelectual, constitucional, trabalhista, entre
outros.”
Um pouco sobre cidadania
digital e alguns exemplos do cotidiano online
Se você reparar, a tecnologia está muito
mais presente e acessível do que imaginávamos e, agora, praticamente
indissociável do mundo "real".
Um verdadeiro "mundo paralelo",
pode-se dizer, no qual é possível fazer praticamente qualquer coisa que fazemos
no mundo “real”.
Ou seja, se no mundo real podemos conhecer e
falar com pessoas, ter uma empresa, falar dos nossos serviços e construir um
nome ou uma imagem consolidada, na internet podemos fazer todas essas coisas,
sem fronteiras geográficas.
E isso vale também para práticas ruins e
criminosas, como ter uma identidade falsa, enganar pessoas, fraudar documentos,
difamar e espalhar malware, e muitas outras.
Essa utilização da internet para fazer praticamente
qualquer coisa que podemos fazer no ambiente offline criou a chamada cidadania
digital.
Os cidadãos digitais são aqueles que usam a
tecnologia com regularidade para se envolver na sociedade. Desde a criação de
um perfil em alguma plataforma digital para advogados, até a compra online de
algum produto existem caminhos exclusivamente digitais para isso.
A boa cidadania digital envolve pessoas que
se conectam umas com as outras e utilizam as diversas ferramentas digitais para
comprar, realizar pagamentos, encontrar e oferecer serviços e fazer negócios.
Além disso, elas são simpáticas e criam relacionamentos duradouros por meio da
internet.
Assim como no mundo real, no mundo online
também foi necessário criar uma estrutura para proteger os usuários, com regras
e políticas que abordam questões relacionadas ao ambiente virtual e
responsabiliza as condutas dos que ali trafegam.
Ao entender que a tecnologia hoje é
indissociável do mundo “real”, você prepara o terreno para a entender os
próximos elementos-chave da cidadania digital e a importância do Direito
Digital.
Regulamentação do
Direito Digital no Brasil
Uma pesquisa do IBGE feita no longínquo
2009, revelou a existência de quase 68 milhões de internautas.
Se por um lado esse número mostrava a evolução
da tecnologia, por outro expressava o desafio de harmonizar a interação entre o
Direito e a chamada cultura digital.
Uma discussão ampla foi realizada com a
sociedade na plataforma “Cultura Digital”, rendendo incontáveis manifestações
sobre o “#marcocivil” nas redes sociais.
De lá para cá, pode-se dizer que as normas
específicas ainda são escassas e as diversas lides envolvendo o Direito Digital
dependem de normas relativas a outras áreas do Direito.
Sem contar que ainda não existe um tribunal
específico destinado a julgar delitos e outras questões que acontecem no
ambiente virtual.
Mesmo assim, o Direito Digital vem ganhando
relevância, principalmente depois de alguns marcos legislativos importantes que
você verá a partir de agora.
Lei Carolina Dieckmann
A Lei Nº 12.737/2012, que ficou conhecida
como Lei Carolina Dieckmann, acrescenta o artigo 154-A ao Código Penal, criando
um tipo penal que criminaliza a invasão de dispositivo informático alheio a fim
de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização do
titular.
Em 2012, a atriz teve fotos íntimas roubadas
por hackers, que exigiram determinada quantia em dinheiro para não divulgá-las
na rede. Como ela não cedeu à tentativa de extorsão, as fotos se tornaram
públicas.
Lei do e-commerce
O Decreto nº 7.962 de 2013, a “Lei do
e-commerce” veio para regulamentar as normas presentes no Código de Defesa do
Consumidor e estipular regras referentes à compra de produtos e serviços no
ambiente online.
O Decreto trata de uma série de questões,
dentre elas as informações que um site deve disponibilizar, a necessidade de
exibir informações claras sobre os produtos, o direito ao arrependimento e a
obrigação de oferecer um atendimento facilitado e de qualidade.
Marco Civil da
Internet
Após 4 anos de debates, pesquisas e
tramitação legislativa, finalmente entra em vigor a Lei nº 12.965/2014, mais
conhecida como o Marco Civil da Internet. Considerada a primeira lei da
história exclusivamente dedicada à regulação geral do uso da internet no Brasil,
o Marco Civil da Internet trata de assuntos específicos ao tráfego de dados e
ao uso da rede mundial de computadores.
Foi aí que o Direito Digital começou a ser
tratado com mais amplitude e relevância.
Liberdade de
Expressão na Internet
A internet é o principal mecanismo, nos dias
de hoje, para o exercício da liberdade de expressão. Você pode abrir o seu
perfil do Facebook e publicar algo em que você está pensando.
A nossa Constituição traz expressamente a
garantia da liberdade de pensamento, expressão e/ou manifestação, no inciso IV,
do artigo 5º. No inciso IX, ela ainda continua a garantir a liberdade de
"expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença".
Antes do Marco Civil da Internet, as
plataformas digitais detinham o controle das publicações e opiniões postadas.
Ou seja, elas tinham o direito de retirar qualquer publicação, de acordo com
que consideravam “conteúdos impróprios” na internet.
Com a vigência da nova legislação, essas empresas
não podem retirar postagens de seus usuários sem que haja uma ordem judicial
específica.
Lei nº 13.640/2018
Com o crescimento da economia compartilhada
e o uso cada vez mais frequente de aplicativos para as mais variadas
necessidades humanas, como, por exemplo, a Uber, provocou uma obrigatoriedade
de mudança na legislação também.
Agora, a realização de viagens
individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários
previamente cadastrados em aplicativos é considerada ilegal se o motorista não
cumprir certas exigências, como a apresentação de certidão negativa de
antecedentes criminais, por exemplo.
Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD)
Após os escândalos de espionagem de Edward
Snowden e as polêmicas envolvendo o vazamento de dados pelo Facebook, no ano de
2018, foi publicada a Lei nº 13.709/2018, a famosa LGPD.
A Lei dispõe justamente sobre o tratamento
de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os
direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento
da personalidade dos titulares dos dados.
Além disso, a LGPD criou um conjunto de
novos conceitos jurídicos (e.g. "dados pessoais", "dados
pessoais sensíveis"), estabeleceu as condições nas quais os dados pessoais
podem ser tratados, gerou obrigações específicas para os controladores dos
dados e criou uma série de procedimentos e normas para que haja maior cuidado
com o tratamento de dados pessoais e seu compartilhamento com terceiros.
O futuro do Direito
Digital
Os exemplos mais comuns de aplicação do
Direito Digital são nos crimes de calúnia, difamação, injúria ou ameaça
praticados no ambiente virtual, seja com a utilização de e-mails, posts nas
redes sociais ou aplicativos como o WhatsApp.
Mas há também outros exemplos na esfera
consumerista, trabalhista e de família, como fraudes de boletos em lojas
virtuais, verificação de e-mails ou mensagens no WhatsApp fora do horário de
trabalho e casos de infidelidade conjugal em sites e aplicativos de
relacionamento.
A ausência de uma lei específica ainda gera
dúvidas na relação entre Direito e tecnologia, e muitas questões importantes
que ainda sequer começaram a ser discutidas devem ganhar mais atenção daqui pra
frente.
Veja alguns exemplos de temas que o Direito
Digital deve introduzir e trazer elementos para o pensamento jurídico.
Biotecnologia
A biotecnologia é a tecnologia baseada nas
ciências biológicas, e possui diferentes níveis, como molecular, celular,
morfofisiológico, ecológico, biodiversidade, reprodução e genética.
Em meio a notícias de criação de embrião
humano a partir de células-tronco e desenvolvimento de órgãos humanos em
animais, o uso de células-tronco, um dos assuntos mais polêmicos da
biotecnologia, ainda será alvo de inúmeras discussões no campo jurídico.
O projeto criado pela Neuralink, startup de
neurotecnologia do bilionário Elon Musk, por exemplo, tem como objetivo
conectar o cérebro das pessoas a smartphones e computadores através de um chip,
e assim explorar as possibilidades da inteligência artificial.
Segundo a empresa, o uso dessa tecnologia é
estritamente médico: recuperar funções perdidas por dano cerebral, como o
controle motor.
O projeto ainda está em fase de testes, mas
seu uso, que pode ser em breve, implica diversos riscos e preocupações, sejam
médicos, já que a instalação da Neuralink exigirá uma forma de cirurgia, ou
jurídicos, pois envolve segurança cibernética e proteção dos dados das pessoas.
Também, a possibilidade de criar em série
órgãos similares aos do corpo humanos empolga profissionais da área e tem o
potencial de inovar as práticas médicas.
Na ortopedia, esses avanços estão mais
palpáveis, com a impressão, por exemplo, de implantes e próteses usando
materiais como aço cirúrgico e silicone.
Mas já existem pesquisadores que pretendem
utilizar a impressora 3D para recriar a parte perdida do cérebro em
traumatismos crânio-encefálico.
A partir dessa realidade, não há dúvidas de
que serão necessárias regras específicas para a impressão 3D, a fim de criar um
ambiente regulatório seguro para viabilizar a produção e a fabricação dos
dispositivos médicos pela manufatura aditiva.
Internet das coisas
- IoT
Internet das Coisas - IoT é um conceito que
se refere à interconexão digital de objetos com a internet, possibilitando que
eles sejam remotamente controlados ou monitorados.
Em outras palavras, se trata de objetos do
dia a dia interconectados digitalmente, que podem ser identificados e
controlados por outros equipamentos e ou por seres humanos.
Essas aplicações, claro, acarretam riscos e
implica grandes desafios.
O Decreto nº 9.854/19 instituiu o Plano
Nacional de Internet das Coisas, estabelecendo pontos importantes para o
desenvolvimento tecnológico e da transformação digital no País.
Tributação da
economia digital
A virtualização dos bens e serviços digitais
propiciou a inevitável estruturação de arranjos empresariais sem fronteiras
geográficas, cujas operações vêm desafiando o sistema tributário internacional
e impactando os respectivos sistemas jurídicos de cada país.
Como já falamos no início, a economia
digital está muito à frente do que temos hoje em termos de leis e precedentes.
A questão que o STF está julgando sobre a tributação dos softwares já não
reflete mais a atual situação do mercado, que já está na fase do Software as a
Service - Saas.
Além disso, a internet das coisas, as
plataformas de economia compartilhada — Uber, Airbnb —, jogos online,
e-commerce, market place, cloud computing, streaming, bitcoins, e outros
negócios disruptivos que movimentam cifras bilionárias apontam para a
necessidade de legislações que contemplem essas evoluções da tecnologia e seus
reflexos na vida humana.
Isso dá mais segurança para as empresas que
pretendem atuar no Brasil, permite alcançar rendas da economia digital que
atualmente não são tributadas e propicia a adequada aplicação dos tratados para
evitar a dupla tributação da renda.
Fake news
Segundo uma pesquisa recente do Ibope, 90%
dos eleitores brasileiros apoiam a regulamentação de redes sociais para
combater fake news.
Enquanto existem investigações contra
empresários e parlamentares acusados de disseminar conteúdo falso pela
internet, com intuito de vantagem política, a "Lei da Fake News" está
sendo discutida, e seu objetivo é estabelecer boas maneiras para empresas e
internautas.
É um debate que está só no começo.
Conclusão
O Direito Digital é uma disciplina que não
pode ser ignorada, muito menos entendida como um simples ramo do Direito, que
lida apenas com questões de informática.
O Direito Digital deve ser entendido como um
todo, de uma sociedade que não conhece mais o mundo sem a tecnologia e que a
utiliza em cada processo ou relação humana.
Somo cidadãos digitais e, em alguns casos, a
própria máquina será nossa testemunha.
As soluções para esta realidade dependem de
profissionais que estejam sempre alinhados com as últimas tendências do Direito
e que pensem de forma disruptiva e global.
Por Pedro Custódio
Fonte Blog do Jusbrasil