quinta-feira, 22 de julho de 2021

DIREITO DIGITAL: TUDO O QUE VOCÊ PRECISA SABER

O Direito Digital é a interpretação do próprio Direito, levando em consideração o contexto digital e os seus impactos numa sociedade altamente conectada

Enquanto os indivíduos caminham para uma realidade cada vez mais digital, surgem novos desafios jurídicos que precisam ser solucionados, e o Direito deve possuir os elementos necessários para isso.
O Direito Digital, então, pode ser entendido como a interpretação do próprio Direito, levando em consideração o contexto digital e os seus impactos numa sociedade altamente conectada.

Mas será que estamos preparados juridicamente para viver no mundo digital?
As inovações tecnológicas trouxeram mudanças significativas na dinâmica da sociedade e no modo como os indivíduos se relacionam, consomem produtos e serviços, fazem negócios e contratam.
Todos esses dados gerados pelos indivíduos, enquanto cidadãos digitais, já estão sendo cogitados como a moeda do futuro, o maior ativo de qualquer negócio.
Surgem, então, diversas questões desafiadoras para os operadores do Direito, que extrapolam o campo da inovação, tecnologia e privacidade na troca desses dados.
Partimos para uma discussão ainda maior, de cunho até sociológico, já que nossa vida social e dia a dia estão sendo impactados por uma matriz diferente da que estamos acostumados.
Biotecnologia, neuroimplantes, transplantes de órgãos impressos em impressoras 3D, biohacking, guerras e ataques virtuais, carros autônomos, nova economia e sua tributação são alguns exemplos de temas que o Direito Digital deve enfrentar com mais profundidade daqui pra frente.
É claro que a velocidade das transformações tecnológicas e as incontáveis - e imprevisíveis - situações do cotidiano digital são muito superiores à capacidade do Estado de criar novas leis.
O mundo está cada vez mais conectado e o Direito Digital serve para trazer elementos que possibilitem o pensamento jurídico e o enfrentamento dessas novas situações.

O que é Direito Digital?
“Direito digital é a evolução do próprio Direito, abrangendo todos os princípios fundamentais que estão vigentes e são aplicados até hoje, assim como introduzindo novos institutos e elementos para o pensamento jurídico, em todas as suas áreas”.
Essa é uma das mais utilizadas definições do Direito Digital. Peguei ela emprestada da advogada Patrícia Peck Pinheiro, referência no Brasil sobre o assunto, além de autora de um dos primeiros livros sobre Direito e Tecnologia na Língua Portuguesa.
O Direito Digital, portanto, é a interpretação da atual matriz jurídica levando em consideração os impactos de uma sociedade digital e altamente conectada.
Neste cenário atual, onde a prova é eletrônica e a testemunha, muitas vezes, é a própria máquina, compreender as questões legais que envolvem o mundo online não é mais uma opção, mas uma necessidade urgente.
Precisamos entender que a sociedade caminha cada vez mais para uma realidade totalmente virtual, fazendo surgir novos desafios que precisam ser enfrentados e resolvidos.
Temas como dados do usuário, privacidade, liberdade de expressão, comércio eletrônico, responsabilidade civil na internet, segurança da informação e tributação digital estão cada vez mais em pauta, interligando todas as esferas jurídicas e exigindo do Direito novos pensamentos e aplicações.
O Direito deve caminhar no mesmo sentido e propor regras que sejam capazes de regulamentar os impactos da tecnologia em todas as esferas das relações humanas, sejam elas comportamentais, políticas, contratuais, financeiras ou tributárias.

Por que o Direito Digital é tão importante?
A internet é uma rede incrível de servidores e computadores interconectados que direcionam as solicitações do navegador da web através de uma rede de conexões com e sem fio, mas apenas uma pequena porcentagem de pessoas no mundo - incluindo estudantes - realmente entende quais são esses processos.
Menos ainda entendem como esses processos funcionam.
Não bastasse isso, é fato que a maioria das pessoas simplesmente não acompanha as leis e regulamentos em constante mudança.
Por exemplo, tente lembrar quantas vezes você leu os termos de uso de alguma plataforma que você utiliza ou a política de privacidade de algum App.
Pelo menos no senso comum, é perfeitamente normal baixar músicas gratuitamente em algum site da internet ou encontrar algum livro disponível para download em PDF.
Aliás, é possível que todos tenhamos feito isso em algum momento da vida.
Há pessoas que sequer imaginam que estão infringindo alguma lei ou simplesmente não sabem o que é o uso apropriado da tecnologia. Por outro lado, existem pessoas que sabem exatamente o que estão fazendo e criam sites ilegais para compartilhamento de arquivos, violam direitos autorais, espalham malwares, divulgam informações falsas, invadem redes ou sistemas com objetivo de prejudicar outras pessoas.
Essas práticas são cada vez mais comuns e exigem leis que protejam direitos e também punam aqueles que violam esses direitos.
Mas não se engane, isso vai muito além da esfera criminal. Existem também diversas outras questões que precisam de regulamentação e interpretações específicas para que o uso da internet seja cada vez mais seguro, ético e justo, como as questões contratuais, consumeristas e tributárias.
Por exemplo, a economia digital está muito à frente do que temos hoje consolidado em termos de leis e precedentes. Ou seja, estamos trabalhando questões inovadoras e disruptivas com leis e precedentes antigos e obsoletos.
A tributação de softwares em um processo que chegou no STF há quase 30 anos já não reflete mais a atual situação do mercado, até porque já avançamos para o Software as a Service - Saas.
Nas palavras de Patrícia Peck:

“… o Direito Digital deixou de ser entendido como uma disciplina vertical, aquele Direito de Informática, de Tecnologia ou Cibernético, para se tornar o Direito como um todo, de uma Sociedade Digital. Por isso, ficou horizontal, transversal e engloba todas as disciplinas do Direito: civil, criminal, contratual, tributário, de propriedade intelectual, constitucional, trabalhista, entre outros.”

Um pouco sobre cidadania digital e alguns exemplos do cotidiano online
Se você reparar, a tecnologia está muito mais presente e acessível do que imaginávamos e, agora, praticamente indissociável do mundo "real".
Um verdadeiro "mundo paralelo", pode-se dizer, no qual é possível fazer praticamente qualquer coisa que fazemos no mundo “real”.
Ou seja, se no mundo real podemos conhecer e falar com pessoas, ter uma empresa, falar dos nossos serviços e construir um nome ou uma imagem consolidada, na internet podemos fazer todas essas coisas, sem fronteiras geográficas.
E isso vale também para práticas ruins e criminosas, como ter uma identidade falsa, enganar pessoas, fraudar documentos, difamar e espalhar malware, e muitas outras.
Essa utilização da internet para fazer praticamente qualquer coisa que podemos fazer no ambiente offline criou a chamada cidadania digital.
Os cidadãos digitais são aqueles que usam a tecnologia com regularidade para se envolver na sociedade. Desde a criação de um perfil em alguma plataforma digital para advogados, até a compra online de algum produto existem caminhos exclusivamente digitais para isso.
A boa cidadania digital envolve pessoas que se conectam umas com as outras e utilizam as diversas ferramentas digitais para comprar, realizar pagamentos, encontrar e oferecer serviços e fazer negócios. Além disso, elas são simpáticas e criam relacionamentos duradouros por meio da internet.
Assim como no mundo real, no mundo online também foi necessário criar uma estrutura para proteger os usuários, com regras e políticas que abordam questões relacionadas ao ambiente virtual e responsabiliza as condutas dos que ali trafegam.
Ao entender que a tecnologia hoje é indissociável do mundo “real”, você prepara o terreno para a entender os próximos elementos-chave da cidadania digital e a importância do Direito Digital.

Regulamentação do Direito Digital no Brasil
Uma pesquisa do IBGE feita no longínquo 2009, revelou a existência de quase 68 milhões de internautas.
Se por um lado esse número mostrava a evolução da tecnologia, por outro expressava o desafio de harmonizar a interação entre o Direito e a chamada cultura digital.
Uma discussão ampla foi realizada com a sociedade na plataforma “Cultura Digital”, rendendo incontáveis manifestações sobre o “#marcocivil” nas redes sociais.
De lá para cá, pode-se dizer que as normas específicas ainda são escassas e as diversas lides envolvendo o Direito Digital dependem de normas relativas a outras áreas do Direito.
Sem contar que ainda não existe um tribunal específico destinado a julgar delitos e outras questões que acontecem no ambiente virtual.
Mesmo assim, o Direito Digital vem ganhando relevância, principalmente depois de alguns marcos legislativos importantes que você verá a partir de agora.

Lei Carolina Dieckmann
A Lei Nº 12.737/2012, que ficou conhecida como Lei Carolina Dieckmann, acrescenta o artigo 154-A ao Código Penal, criando um tipo penal que criminaliza a invasão de dispositivo informático alheio a fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização do titular.
Em 2012, a atriz teve fotos íntimas roubadas por hackers, que exigiram determinada quantia em dinheiro para não divulgá-las na rede. Como ela não cedeu à tentativa de extorsão, as fotos se tornaram públicas.

Lei do e-commerce
O Decreto nº 7.962 de 2013, a “Lei do e-commerce” veio para regulamentar as normas presentes no Código de Defesa do Consumidor e estipular regras referentes à compra de produtos e serviços no ambiente online.
O Decreto trata de uma série de questões, dentre elas as informações que um site deve disponibilizar, a necessidade de exibir informações claras sobre os produtos, o direito ao arrependimento e a obrigação de oferecer um atendimento facilitado e de qualidade.

Marco Civil da Internet
Após 4 anos de debates, pesquisas e tramitação legislativa, finalmente entra em vigor a Lei nº 12.965/2014, mais conhecida como o Marco Civil da Internet. Considerada a primeira lei da história exclusivamente dedicada à regulação geral do uso da internet no Brasil, o Marco Civil da Internet trata de assuntos específicos ao tráfego de dados e ao uso da rede mundial de computadores.
Foi aí que o Direito Digital começou a ser tratado com mais amplitude e relevância.

Liberdade de Expressão na Internet
A internet é o principal mecanismo, nos dias de hoje, para o exercício da liberdade de expressão. Você pode abrir o seu perfil do Facebook e publicar algo em que você está pensando.
A nossa Constituição traz expressamente a garantia da liberdade de pensamento, expressão e/ou manifestação, no inciso IV, do artigo 5º. No inciso IX, ela ainda continua a garantir a liberdade de "expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".
Antes do Marco Civil da Internet, as plataformas digitais detinham o controle das publicações e opiniões postadas. Ou seja, elas tinham o direito de retirar qualquer publicação, de acordo com que consideravam “conteúdos impróprios” na internet.
Com a vigência da nova legislação, essas empresas não podem retirar postagens de seus usuários sem que haja uma ordem judicial específica.

Lei nº 13.640/2018
Com o crescimento da economia compartilhada e o uso cada vez mais frequente de aplicativos para as mais variadas necessidades humanas, como, por exemplo, a Uber, provocou uma obrigatoriedade de mudança na legislação também.
Agora, a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos é considerada ilegal se o motorista não cumprir certas exigências, como a apresentação de certidão negativa de antecedentes criminais, por exemplo.

Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
Após os escândalos de espionagem de Edward Snowden e as polêmicas envolvendo o vazamento de dados pelo Facebook, no ano de 2018, foi publicada a Lei nº 13.709/2018, a famosa LGPD.
A Lei dispõe justamente sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade dos titulares dos dados.
Além disso, a LGPD criou um conjunto de novos conceitos jurídicos (e.g. "dados pessoais", "dados pessoais sensíveis"), estabeleceu as condições nas quais os dados pessoais podem ser tratados, gerou obrigações específicas para os controladores dos dados e criou uma série de procedimentos e normas para que haja maior cuidado com o tratamento de dados pessoais e seu compartilhamento com terceiros.

O futuro do Direito Digital
Os exemplos mais comuns de aplicação do Direito Digital são nos crimes de calúnia, difamação, injúria ou ameaça praticados no ambiente virtual, seja com a utilização de e-mails, posts nas redes sociais ou aplicativos como o WhatsApp.
Mas há também outros exemplos na esfera consumerista, trabalhista e de família, como fraudes de boletos em lojas virtuais, verificação de e-mails ou mensagens no WhatsApp fora do horário de trabalho e casos de infidelidade conjugal em sites e aplicativos de relacionamento.
A ausência de uma lei específica ainda gera dúvidas na relação entre Direito e tecnologia, e muitas questões importantes que ainda sequer começaram a ser discutidas devem ganhar mais atenção daqui pra frente.
Veja alguns exemplos de temas que o Direito Digital deve introduzir e trazer elementos para o pensamento jurídico.

Biotecnologia
A biotecnologia é a tecnologia baseada nas ciências biológicas, e possui diferentes níveis, como molecular, celular, morfofisiológico, ecológico, biodiversidade, reprodução e genética.
Em meio a notícias de criação de embrião humano a partir de células-tronco e desenvolvimento de órgãos humanos em animais, o uso de células-tronco, um dos assuntos mais polêmicos da biotecnologia, ainda será alvo de inúmeras discussões no campo jurídico.
O projeto criado pela Neuralink, startup de neurotecnologia do bilionário Elon Musk, por exemplo, tem como objetivo conectar o cérebro das pessoas a smartphones e computadores através de um chip, e assim explorar as possibilidades da inteligência artificial.
Segundo a empresa, o uso dessa tecnologia é estritamente médico: recuperar funções perdidas por dano cerebral, como o controle motor.
O projeto ainda está em fase de testes, mas seu uso, que pode ser em breve, implica diversos riscos e preocupações, sejam médicos, já que a instalação da Neuralink exigirá uma forma de cirurgia, ou jurídicos, pois envolve segurança cibernética e proteção dos dados das pessoas.
Também, a possibilidade de criar em série órgãos similares aos do corpo humanos empolga profissionais da área e tem o potencial de inovar as práticas médicas.
Na ortopedia, esses avanços estão mais palpáveis, com a impressão, por exemplo, de implantes e próteses usando materiais como aço cirúrgico e silicone.
Mas já existem pesquisadores que pretendem utilizar a impressora 3D para recriar a parte perdida do cérebro em traumatismos crânio-encefálico.
A partir dessa realidade, não há dúvidas de que serão necessárias regras específicas para a impressão 3D, a fim de criar um ambiente regulatório seguro para viabilizar a produção e a fabricação dos dispositivos médicos pela manufatura aditiva.

Internet das coisas - IoT
Internet das Coisas - IoT é um conceito que se refere à interconexão digital de objetos com a internet, possibilitando que eles sejam remotamente controlados ou monitorados.
Em outras palavras, se trata de objetos do dia a dia interconectados digitalmente, que podem ser identificados e controlados por outros equipamentos e ou por seres humanos.
Essas aplicações, claro, acarretam riscos e implica grandes desafios.
O Decreto nº 9.854/19 instituiu o Plano Nacional de Internet das Coisas, estabelecendo pontos importantes para o desenvolvimento tecnológico e da transformação digital no País.

Tributação da economia digital
A virtualização dos bens e serviços digitais propiciou a inevitável estruturação de arranjos empresariais sem fronteiras geográficas, cujas operações vêm desafiando o sistema tributário internacional e impactando os respectivos sistemas jurídicos de cada país.
Como já falamos no início, a economia digital está muito à frente do que temos hoje em termos de leis e precedentes. A questão que o STF está julgando sobre a tributação dos softwares já não reflete mais a atual situação do mercado, que já está na fase do Software as a Service - Saas.
Além disso, a internet das coisas, as plataformas de economia compartilhada — Uber, Airbnb —, jogos online, e-commerce, market place, cloud computing, streaming, bitcoins, e outros negócios disruptivos que movimentam cifras bilionárias apontam para a necessidade de legislações que contemplem essas evoluções da tecnologia e seus reflexos na vida humana.
Isso dá mais segurança para as empresas que pretendem atuar no Brasil, permite alcançar rendas da economia digital que atualmente não são tributadas e propicia a adequada aplicação dos tratados para evitar a dupla tributação da renda.

Fake news
Segundo uma pesquisa recente do Ibope, 90% dos eleitores brasileiros apoiam a regulamentação de redes sociais para combater fake news.
Enquanto existem investigações contra empresários e parlamentares acusados de disseminar conteúdo falso pela internet, com intuito de vantagem política, a "Lei da Fake News" está sendo discutida, e seu objetivo é estabelecer boas maneiras para empresas e internautas.
É um debate que está só no começo.
                                                                                                                
Conclusão
O Direito Digital é uma disciplina que não pode ser ignorada, muito menos entendida como um simples ramo do Direito, que lida apenas com questões de informática.
O Direito Digital deve ser entendido como um todo, de uma sociedade que não conhece mais o mundo sem a tecnologia e que a utiliza em cada processo ou relação humana.
Somo cidadãos digitais e, em alguns casos, a própria máquina será nossa testemunha.
As soluções para esta realidade dependem de profissionais que estejam sempre alinhados com as últimas tendências do Direito e que pensem de forma disruptiva e global.

Por Pedro Custódio
Fonte Blog do Jusbrasil