Para
quem gosta de números, aqui vai um bom motivo para continuar lendo este ensaio.
25% dos julgados a respeito de condomínios se referem a um único assunto:
garagem. E não é difícil descobrir a razão. Trata-se de um tema que comporta
várias possibilidades e posicionamentos. A sua regulamentação é escassa,
baseada em grande parte em construções doutrinárias e jurisprudenciais. A Lei
4591/64, que regulamenta os condomínios em edificações, foi promulgada, depois
de sofrer cortes e vetos, sem conter qualquer disciplina atinente a garagem. Só
com a Lei 4864/65 é que foram acrescentados três parágrafos ao art. 2º daquela
Lei, regendo o assunto.
O
condomínio em edifícios é formado por dois elementos: as unidades autônomas e a
área comum. O termo “unidade autônoma” compreende qualquer unidade habitacional
(apartamento, flat, chalé etc.) ou profissional (sala, loja, escritório,
conjunto etc.) É o elemento principal, objeto de propriedade exclusiva. Já a
área comum (alicerces, hall de entrada, portaria, jardins, escadas, corredores
etc.) é considerada acessório da unidade autônoma, e objeto de co-propriedade.
Cada condômino tem uma fração ideal da área comum, na medida de sua unidade
autônoma. É vedado o uso exclusivo de áreas comuns por um só dos condôminos
(cf. art. 3º, in fine).
A REGRA: GARAGEM COMO PROPRIEDADE EXCLUSIVA
ACESSÓRIA
A
vaga de garagem não se encaixa nem como área comum nem como unidade autônoma. É
um tertium genus. Vejamos o §1º do referido art. 2º, um dos três acrescidos
pela Lei 4864:
"O direito à guarda de
veículos nas garagens ou locais a isso destinados nas edificações ou conjuntos
de edificações será tratado como objeto de propriedade exclusiva, com ressalva
das restrições que ao mesmo sejam impostas por instrumentos contratuais
adequados, e será vinculada à unidade habitacional a que corresponder, no caso
de não lhe ser atribuída fração ideal específica de terreno."
Observe-se
que a lei não se refere à vaga de garagem em si, mas ao “direito à guarda do
veículo nas garagens”. É uma relação de continente e conteúdo. Em vez de se
referir ao objeto da propriedade, a lei fala em uma das faculdades implícitas
no direito. Não é motivo para considerar o direito à garagem como mero direito
real de uso. Isto identificaria a garagem com uma parte comum, concedida para
uso exclusivo a um condômino, o que conflitaria com a vedação da utilização
exclusiva das partes comuns por qualquer condômino. Forçoso é admitir o direito
à garagem como um direito de propriedade exclusiva, embora limitado por restrições
típicas do condomínio.
A
garagem, assim, é objeto de propriedade exclusiva (assim como é a unidade
autônoma), mas acessória da unidade autônoma (tal como a fração ideal da coisa
comum).
Caio
Mário da Silva Pereira, autor do anteprojeto da Lei 4591, criticou a idéia de
que um bem restrito pelo caráter da acessoriedade seja objeto de exclusividade.
Com a devida venia, entendemos serem estes caracteres independentes entre si. É
certo que, na acepção em que a estamos analisando, a garagem não tem registro imobiliário
próprio, mas é impossível entendê-la como propriedade comum. As restrições na
sua utilização se devem à sua natureza de parte integrante de um edifício
condominial.
A
garagem, assim vista, não pode ser alienada separadamente da unidade a estranhos
ao condomínio. A ratio é simples: como é acessório, a que não cabe fração
ideal, o estranho que a adquirisse ficaria sem fração ideal; logo, numa posição
sem direitos nem deveres, incompatível com a idéia de condomínio. Nada impede,
porém, que a garagem seja alugada ou cedida a estranhos (desde que a Convenção
não proíba), pois aí não há transferência de propriedade.
Seguindo
o mesmo raciocínio, a alienação da garagem a outro condômino é perfeitamente
possível. Há apenas a transferência de um acessório de uma unidade para outra.
O mesmo ocorre com o condômino que vende a sua unidade autônoma, fazendo
reserva da garagem para si, desde que tenha outra unidade autônoma no mesmo
edifício, a que se adere a garagem reservada. Vejamos o que diz o art. 2º, §2º,
da Lei:
"O direito de que
trata o §1º deste artigo poderá ser transferido a outro condômino,
independentemente da alienação da unidade a que corresponder, vedada a sua
transferência a pessoas estranhas ao condomínio."
É
indispensável, porém, que estas alterações sejam averbadas nas escrituras das
unidades. Por outro lado, se um condômino, ao alienar sua unidade autônoma, não
inclui nem exclui a garagem na escritura de transferência, entende-se esta como
incluída, por força da regra de que “o acessório segue o principal”.
A
Convenção de Condomínio é o instrumento hábil para fazer a demarcação das vagas
na garagem (art. 9º, §3º, a), incluindo seus acessos e especificação de vagas
para carros grandes e pequenos. Outro modo é por assembléia geral
extraordinária, em deliberação unânime dos condôminos, alterando a Convenção ou
o Regimento interno, que deve ser levada a registro imobiliário para valer
contra terceiros. A simples ocupação das melhores vagas pelos primeiros habitantes
ou a atribuição de vagas por ato do síndico não tem nenhum efeito jurídico.
EXCEÇÃO 1: GARAGEM COMO PROPRIEDADE EXCLUSIVA
PRINCIPAL
Há,
contudo, casos em que a garagem não é o acessório, mas o principal. Um deles é
o do edifício-garagem, onde a própria garagem é a unidade autônoma, com
registro imobiliário próprio, visto que não há apartamento, sala, etc. a que
corresponda. É o que decorre da interpretação a contrario sensu do supracitado
§1º, in fine: a vaga de garagem a que não corresponda uma unidade autônoma terá
uma fração ideal própria. O §3º do mesmo artigo não deixa dúvidas:
"Nos
edifícios-garagens, às vagas serão atribuídas frações ideais de terreno
específicas."
O
outro caso é o dos edifícios mistos de garagens e unidades profissionais e
habitacionais. Comuns nos grandes centros urbanos, nestes prédios há, por
decisão do instituidor, dois condomínios independentes entre si. Um funciona
como edifício-garagem; o outro é um condomínio de unidades residenciais ou
comerciais, desprovido de garagens. Desta forma, p.ex., pode-se adquirir um
escritório sem comprar uma garagem, ou comprando três delas. Para o escritório,
haverá uma parte comum correspondente; para a garagem, também. Cada um destes
tem registro imobiliário próprio.
Em
ambos os casos, a garagem é livremente alienável a condôminos ou a terceiros,
dado o seu caráter de principal.
EXCEÇÃO 2: GARAGEM COMO ÁREA COMUM
Nos
edifícios em que há menos vagas que unidades autônomas, é possível que a
Convenção determine que a área da garagem seja comum. A cada hora, quem
encontrar vaga para seu veículo, pode estacioná-lo. Admite-se, porém, a
reintegração de posse se, por longos anos, somente os mesmos condôminos vêm
usando as vagas.
Sendo
área comum, é vedada sua alienação a estranhos. Além disso, devido à
indeterminação sobre qual é a vaga alienada, o alheamento se estenderia a toda
a superfície da garagem — e o sistema brasileiro não admite o direito de
superfície.
Também
não cabe o usucapião da garagem comum por um dos condôminos, por força da
vedação à utilização exclusiva da área comum por um condômino (art. 3º, in
fine). Todavia, cremos que nada impede o usucapião por estranhos, transformando
esta garagem em propriedade exclusiva independente do edifício em condomínio.
Em
alguns edifícios, a área dos pilotis (pilares de sustentação da base do
edifício) é definida como sendo comum. Mas é lícito que, pela Convenção ou pela
anuência de todos os condôminos, seja destinada para garagem de alguns deles.
Pode-se convencionar que os beneficiados paguem aluguel ao condomínio.
Não
é admissível que se considere de uso comum a garagem em condições de abrigar
automóveis em número correspondente ao dos condôminos, se ela não é
expressamente incluída nem excluída da propriedade exclusiva no contrato.
GARAGEM COMO PROPRIEDADE EXCLUSIVA ACESSÓRIA
PRIVILEGIADA
Sendo
insuficientes as vagas, outra solução é que a Convenção estabeleça um método
(sorteio ou acordo), pelo qual alguns dos condôminos ficam com estas vagas. O
direito à garagem é um privilégio, a que deve corresponder um encargo: um
acréscimo na fração ideal.
Esta
não é mais uma exceção, mas uma confirmação da regra geral pela qual a garagem
é propriedade exclusiva e acessória da unidade autônoma, embora neste caso seja
um privilégio de apenas alguns dos condôminos.
Trata-se
de hipótese distinta da do condomínio misto. A garagem aqui é acessório, sem
registro próprio, e não principal. Aqui, não cabe falar em alienação da garagem
a estranhos, pois esta não representa uma fração própria, mas um acréscimo na
fração da unidade a que corresponde. Além disso, seria um contra-senso alienar
a garagem a terceiros se estas não bastam nem aos condôminos.
CONCLUSÃO
O
problema da garagem é multifacetado. Normalmente, a vaga de garagem em
condomínios é um acessório da unidade autônoma e é objeto de propriedade
exclusiva do condômino. Porém, nos edifícios-garagem e nos mistos, a garagem
pode ser a própria unidade autônoma, caso em que é o bem principal. Em
edifícios com menos vagas que unidades autônomas, a Convenção pode estabelecer
que a área destinada a estacionamento não pertença a nenhum dos condôminos em
particular, mas a todos como área comum.
O
assunto, na verdade, nada tem de complicado. As situações possíveis são bem
caracterizadas e definidas. Os julgados sobre o tema são muitos, mas de uma
notável uniformidade de diretrizes. Ou seja: o assunto em si não deixa margem a
dúvidas. Contudo, a redação dos dispositivos legais sobre o tema deixa a
desejar, por sua falta de clareza e objetividade. Uma redação menos atribulada
da lei evitaria o surgimento de controvérsias em sua raiz, ou seja, no arbítrio
das partes.
Por
Paulo Gustavo Sampaio Andrade
Fonte
Jus Navigandi