Reflexões sobre o pacto ad corpus e ad mensuram no Código de Defesa do Consumidor
A partir do CDC, se a construtora anunciar que o imóvel tem certa metragem, deverá cumprir o que foi pactuado. Não vale mais o argumento de que a área da unidade é um fator menos preponderante que a localização do empreendimento e a qualidade do edifício.
Seu apartamento parece menor do que o anunciado pela Construtora?
Em Brasília, um comprador resolveu tirar a prova. Mediu por conta própria sua unidade, e constatou que o imóvel tinha 1,45% a menos do que a medida anunciada. Revoltado, ingressou com ação no Judiciário, requerendo o abatimento proporcional do preço pelo valor da área faltante (ação quanti minoris). Em grau de recurso, decidiu o STJ que a medida não foi o fator preponderante desse negócio, já que o “erro” da construtora foi inferior a 5% da área total da unidade negociada. Nesse caso, haveria presunção (art. 500, §1º, do CC) de que a venda se realizaria ainda que o comprador soubesse que a área era menor do que a anunciada (venda ad corpus). Não haveria, portanto, direito à indenização. Final da história: deram razão a Paulo Octávio, Construtora que foi ré nesse processo ( Resp 326.125 -DF).
Essa decisão não significa que o STJ liberou as Construtoras para errarem em 5% sobre o total da área das unidades vendidas. No processo relativo ao recurso mencionado, o contrato entre as partes fora celebrado antes do Código de Defesa do Consumidor (antes de 12/09/1990). Isso fez toda a diferença para a solução do caso, como afirmou no voto a relatora, Ministra Isabel Gallotti. Sob a vigência do Código Civil, a doutrina e a jurisprudência sempre entenderam que a medida não era o fator preponderante na compra de apartamentos [i]. A metragem anunciada tinha caráter meramente anunciativo [ii], caso não houvesse pacto acessório considerando que a venda seria por medida. Desse modo, nessa época, se houvesse erro de 5% na metragem da unidade entregue, não haveria falar-se em direito à indenização pelo valor da área faltante.
A partir do CDC, se a Construtora anunciar que a unidade vendida tem, por ex., 100 m2, deverá cumprir exatamente o que foi pactuado. Não há margem de erro de 5% sobre a área do imóvel negociada, sob o argumento de que a venda de apartamentos presume-se ser feita mais pela localização do empreendimento e pela qualidade do edifício do que pela área da unidade. Isso porque o Código de Defesa do Consumidor adota, em seu art. 18, §1º, a teoria da qualidade[iii]. O fornecedor passa a ter o dever de respeitar as confianças legítimas do consumidor. Além disso, as características dos produtos ou serviços anunciadas em panfletos, outdoors passaram a integrar o contrato entre o que faz a oferta e o futuro comprador. Desse modo, se a Construtora anuncia 100 metros quadrados, deve entregar a unidade com essa medida exata. Se errar para menos, o comprador pode pedir o complemento da área (o que é impossível num edifício já construído) ou o abatimento pela área que faltou. Pode ainda requerer o desfazimento do contrato se assim preferir. Essa última hipótese é uma ótima alternativa para os que não têm condições de financiar o valor do imóvel após a entrega de chaves. Se o erro for superior, vale dizer, se a Construtora anunciou, por ex., 100 metros e vende 105 metros, o Código de Defesa do Consumidor não permitirá a cobrança pelo excesso, já que considera prática abusiva fornecer ao consumidor produto ou serviço não solicitado. Trata-se, na linguagem do CDC, de amostra grátis, não existindo, portanto, obrigação de pagamento.
A tese de que a Construtora deve entregar a unidade com o valor exato da área anunciada, após o CDC, foi consagrada no Superior Tribunal de Justiça a partir do Resp 436.853. Decidiram nesse recurso que:
“A referência à área do imóvel nos contratos de compra e venda de imóvel adquiridos na planta regidos pelo CDC não pode ser considerada simplesmente enunciativa, ainda que a diferença encontrada entre a área mencionada no contrato e a área real não exceda um vigésimo (5%) da extensão total anunciada,devendo a venda, nessa hipótese, ser caracterizada sempre como por medida , de modo a possibilitar ao consumidor o complemento da área, o abatimento proporcional do preço ou a rescisão do contrato”
A Construtora acusada também nesse processo de vender área menor que a anunciada foi coincidentemente a Paulo Octávio.
Vale lembrar que não é necessário provar que a Construtora utilizou de má-fé ao entregar área menor que a anunciada. Impor ao consumidor o ônus de provar a culpa da Construtora implicaria a impunidade dessas. Poderiam alegar erro razoável na construção, fugindo da responsabilidade. O Código de Defesa do Consumidor, atento a isso, eximiu o consumidor de provar a culpa, bastando o fato lesivo para a indenização. Portanto, para receber da construtora o valor correspondente à área faltante, basta demonstrar em juízo que o valor da área do imóvel é diferente da medida prevista expressamente no contrato ou em anúncios, os quais também integram o contrato.
Outro ponto a ser considerado é o custo-benefício para que o consumidor receba o valor dessa indenização. Caso desconfie de que a medida de seu imóvel não corresponda ao valor anunciado, pode fazer a medição por conta própria. Mas é improvável que um popular consiga com uma fita métrica medir sua unidade. Há o espaçamento dos tijolos, das esquadrias, que podem atrapalhar o cálculo preciso. Em contrapartida, o erro de 1m2 pode valer R$ 10.000,00 em alguns pontos de Brasília. A contratação de um topógrafo parece ser o mais indicado para comprovar o golpe.
Notas
i Em posição isolada, mas digna de nota, Whitaker, para quem: “[...]se no contrato não houver elementos para apurar qual foi essa intenção, entende-se que a venda foi feita ‘ad mensuram’, pois contra o vendedor deve ser interpretado o contrato, consoante o ensinamento da melhor doutrina” Cunha, Fernando Whitaker da, 1930. Vendas “ad mensuram” e “ad corpus”. In: Revista de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 13, p. 14-16, out./dez., 1992
ii BENJAMIN, Herman. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 39.
Por João Paulo Rodrigues de Castro
Fonte Jus Navigandi