Os serviços no Brasil são caros e de má qualidade, mas
isso é decorrente de uma escolha pelo lucro imediato e expansão acelerada de
vendas em detrimento da assistência pós-venda, da fidelização pela qualidade e
da boa informação ao consumidor
Primeiramente,
é importante abordar a questão da qualidade dos serviços, públicos e privados
no Brasil.
Muito
embora os preços de serviços no Brasil estejam já bastante próximos daqueles
praticados na Europa, Ásia e Estados Unidos, ainda não dispomos da qualidade
que está presente nessas localidades. Em relação aos produtos, já é bastante
sabido que os preços daqui são superiores e, igualmente ao que ocorre nos
serviços, o que nos é oferecido não é de qualidade superior que justifique a
disparidade de preço.
Isso
não ocorre apenas nos serviços privados, mas também nos serviços públicos. Essa
foi uma das razões das manifestações que afloraram no último mês de junho por
todo o país.
Não
há nenhum país do mundo em que os serviços privados sejam de qualidade sem que
os serviços públicos estejam em um patamar semelhante de qualidade. Mas quando
o padrão de referência de qualidade mínima desaparece, a tendência é que tanto
os serviços públicos quanto os privados percam nesse quesito.
No
caso das manifestações, vale lembrar que vários dos serviços que foram objeto
de queixas dos brasileiros – notadamente o de transporte coletivo – são
serviços prestados por empresas privadas, mas são públicos e concedidos, ou
mesmo de interesse público, como a educação privada.
O
que quer dizer que na maior parte dos casos, o papel do Estado para a
manutenção da qualidade, seja porque ele presta serviço semelhante, seja porque
ele pode e deve fiscalizar e exigir o cumprimento de parâmetros e metas na
prestação dos serviços, é essencial.
Infelizmente,
não é isso que observamos no país.
A importância da fiscalização
Não
raro, o Estado não consegue fiscalizar de maneira eficaz a prestação desses
serviços que são prestados em regime de concessão e mesmo aqueles que não são
desta natureza, mas estão sob regulamentação de algum órgão federal, estadual
ou mesmo municipal.
O
caso mais evidente é o das agências reguladoras e das autarquias que tem sob
sua tutela atividades como serviços financeiros, telecomunicações – incluindo
aí o telefone celular, o fixo, a internet e a TV por assinatura – e assistência
à saúde, para ficar apenas em três exemplos.
Os
órgãos federais encarregados de zelar pela boa prestação desses serviços pecam
por, pelo menos, duas razões.
A
primeira, é que eles estão bastante suscetíveis a influências do próprio setor
regulado, muitas vezes, até, com a presença de pessoas ocupando cargos de
direção e que estiveram recentemente nas empresas reguladas. É o que chamamos
de “captura” da entidade reguladora pelo ente regulado.
A
segunda razão, é que na maior parte das vezes, as agências pautam sua atividade
regulatória e fiscalizadora por regras específicas do setor, esquecendo-se dos
direitos do consumidor. Os objetivos perseguidos pelas agências são dados pela
dinâmica do próprio setor regulado e não visam, necessariamente, a melhoria da
qualidade dos serviços ao consumidor e ao cidadão. Exemplo disso é quando o
Banco Central se esquiva de punir e corrigir a má prática recorrente de bancos
em relação ao consumidor, alegando que seu papel é apenas “zelar pela higidez
do sistema financeiro”. Caberia perguntar, então, por que razão o Banco Central
mantém um índice de reclamações atualizado mensalmente em seu site. Se não é
para agir, para que serve? Afinal, ele é a autoridade monetária!
Mas
não é apenas o Banco Central que age assim.
Inúmeras pesquisas do Idec fotografam em
diversos momentos algumas práticas dos prestadores desses serviços em relação
ao consumidor. O interessante é que fazemos nossas pesquisas e testes sempre na
perspectiva de um consumidor comum, o que significa que sondamos aspectos
básicos na oferta e prestação de serviços. E contratamos os serviços como
qualquer um.
Contra
o argumento recorrente das empresas de que as irregularidades que encontramos
podem ser resultados de acidentes ou equívocos pontuais, nós sempre dizemos que
encontramos os mesmos problemas a cada vez que testamos os serviços, e isso ao
longo de 26 anos de atividades do Idec!
Assim,
há mais de uma década constatamos que os bancos não entregam contratos e nem
especificam os pacotes de serviços, não informam corretamente sobre taxas reais
e outros valores quando alguém contrata um empréstimo, impõem a venda casada de
seguros e outros serviços, cobram tarifas diferentes das pactuadas inicialmente
com seus clientes, enviam cartões de crédito sem solicitação do consumidor e
por aí afora.
A
mesma coisa pode ser dita das empresas de telefonia e de serviços de
telecomunicações e entretenimento. Os planos ilimitados nunca são exatamente
isso, os valores atraentes são sempre “promocionais” e duplicam em pouco tempo,
as taxas por serviços adicionais são surpreendentemente altas e os pacotes são
alterados segundo o desejo e conveniência das empresas – isso é bastante comum
nos serviços de TV por assinatura. Para não falar na baixa qualidade
propriamente dos serviços – a lentidão e a irregularidade da telefonia e da
internet – e da omissão e inépcia na assistência pós-venda.
No
setor de saúde suplementar – os planos de saúde – o padrão de qualidade é
igualmente sofrível. Quando não se pode pagar um plano de elevadíssimo padrão,
o que verificamos em 90% dos casos é a negativa de cobertura diante da
necessidade de um tratamento, internação ou cirurgia, a exclusão de um
profissional, hospital ou laboratório da lista dos credenciados e, finalmente,
os aumentos muitas vezes superiores à inflação, que nos chegam todos os anos e
a cada vez que ultrapassamos uma determinada idade.
Todas
essas irregularidades estão estampados não apenas em nossas pesquisas e testes,
mas nos milhões de queixas de consumidores nos Procons do país, nas redes
sociais e páginas da internet, nos SACs das empresas, nas ouvidorias e até nas
agências reguladoras.
São
milhões de conflitos de consumo, mas ainda subdimensionados, porque nem sempre
que temos um problema, passamos ao ato de reclamar.
Temos,
portanto, um déficit enorme de qualidade que está ligado a várias razões, desde
a incapacidade técnica dos prestadores até as irregularidades na oferta e na
informação ao consumidor. Esse déficit de qualidade, é bom que se diga, está
ligado a uma escolha pela maximização dos lucros a qualquer preço.
Surge,
então, de maneira inevitável na discussão, quando ela é travada a partir da
perspectiva do consumidor, a questão de qual é o papel do marketing e da
publicidade – e dos profissionais que aí atuam – relacionados à má qualidade
desses serviços e aos conflitos de consumo resultantes.
A
tese, aqui, é a de que muitos dos problemas de qualidade dos serviços se
originam na informação e ofertas inadequadas, para dizer o mínimo, e que,
portanto, numerosos conflitos de consumo poderiam ser evitados.
Marketing, publicidade e conflitos de consumo
Será que o papel da boa publicidade e do
marketing e do bom profissional dessa área deve ser apenas o de maximizar as
vendas?
É possível ao bom profissional atingir o
máximo do potencial comprador de um serviço apenas destacando as
características do mesmo?
O que é mais importante para uma empresa do
ponto de vista da sustentabilidade econômica e para uma atividade responsável
de publicidade? Vender ou fidelizar? Será possível fazer os dois ao mesmo tempo
com a mesma intensidade e eficácia?
Para a empresa ciosa de sua marca e de sua
reputação é tão importante a pré-venda como a pós-venda?
Ou em outros termos, o consumidor é
importante apenas quando leva a mão ao bolso ou também quando precisa de alguma
assistência após contratar o serviço?
As promoções e ofertas podem obter sucesso
máximo sendo ao mesmo tempo verdadeiras e prestando todas as informações
relevantes ao consumidor?
Sendo os serviços cada vez mais
intercambiáveis e reversíveis, deve-se buscar a fidelização do consumidor
apenas por meio de multas e cláusulas contratuais?
A
resposta a essas e outras perguntas não é fácil e nem deve ser dada só pelo
profissional de marketing e publicidade, mas ao tentar buscar uma solução para
elas, entramos no campo do que poderíamos chamar a publicidade e o marketing
responsáveis que operam em estrita observação ao direito do consumidor.
Não
é que os inúmeros conflitos aí vislumbrados sejam culpa dos profissionais desta
área. Em geral, não o são mesmo. Estão muito mais ligados a um modelo de
negócio. Mas é que se os profissionais da publicidade e do marketing se puserem
a conhecer um pouco mais do direito do consumidor – que busca a proteção das
pessoas nas situações mais corriqueiras – é líquido e certo que os conflitos de
consumo diminuirão. Obviamente, pode ser que isso cause uma diminuição no
faturamento imediato das empresas, e esta é realmente a questão a verificar –
se é verdadeira ou não – e a enfrentar.
Mas
vale lembrar que a perspectiva pode não ser apenas a altruísta – a de pensar no
bem do consumidor –, mas também a egoísta, que visa diminuir o litígio e os
custos judiciais de uma empresa.
Não
há nenhum mistério em relacionar o respeito ao direito do consumidor à boa
publicidade e ao marketing.
Eis
alguns mandamentos simples:
•
Fornecer o máximo de informações relevantes de maneira clara e precisa, não
omitindo características importantes do serviço, como limitações, exclusões e
mudanças ao longo do contrato;
•
Cumprir exatamente tudo o que está dito na oferta, sendo ela em meio
eletrônico, impresso, ou audiovisual;
•
Nunca criar, na publicidade, situações que induzirão o consumidor a erro ou o
levarão a se prejudicar a si mesmo;
•
Entender que para motivar a imaginação e despertar o desejo do consumidor não é
preciso apelar apenas para aspectos absolutamente alheios ao produto (estilo de
vida, sentimentos genéricos de bem-estar e coisas semelhantes)
•
Não desprezar ou dificultar a vida do consumidor só porque ele já assinou o
contrato ou adquiriu o serviço;
•
Fidelizar pela qualidade do serviço e não por cláusulas que obrigam a pessoa a
se manter cliente, mesmo que insatisfeita;
•
Não subestimar a capacidade de um só consumidor em levar adiante sua
insatisfação, seja na internet, seja num órgão de defesa do consumidor;
•
Adotar a perspectiva de que não é necessário ter uma lei ou norma qualquer para
que a empresa busque todas as formas de atender bem o consumidor.
Muitas
dessas coisas parecem não estar relacionadas à atividade de marketing e de
publicidade, mas se olharmos com atenção, podem estar. Atender bem no chamado
pós-venda faz parte do marketing, do mesmo modo que prever e lutar por espaço
visual para destacar um canal de reclamações ou informações numa peça
publicitária.
Empresas
de telecomunicações talvez não conseguissem vender a mesma quantidade de
serviços e produtos que vendem, mas gerariam menos problemas aos seus clientes
se as informações que fazem parte da oferta fossem mais claras e precisas.
Planos
de saúde talvez não fossem tão sedutores se as condições de uso e amplitude de
serviços estivessem bem delimitadas na oferta, mas a saúde dos consumidores
agradeceria por não correr riscos desavisadamente.
Cartões
de crédito seriam usados com mais parcimônia se as taxas de juros de rolagem
das faturas fossem mais claras, mas a inadimplência e o endividamento
diminuiriam.
Muitas
pessoas relatam, com indignação em relação ao Brasil, a diferença de serviços e
práticas existentes nos Estados Unidos, por exemplo. Lá, dizem, podemos trocar
de operadora de celular a qualquer hora, sem multa ou outra obrigação; pode-se
mandar de volta um produto comprado pela internet ou mesmo devolver algo
comprado numa loja sem precisar esclarecer o motivo. Os exemplos são
incontáveis.
Aqui,
foi preciso baixar, em 2008, um decreto para estipular como os SACs devem
atender seus clientes! O pior é que, mesmo assim, a coisa não anda bem...
O
governo acaba de baixar outro decreto para regulamentar os principais procedimentos
do comércio eletrônico em relação ao consumidor.
O
Código de Defesa do Consumidor completou em setembro 23 anos de sua promulgação
e não é nenhum exagero dizer que ele prevê em apenas alguns artigos quase todas
as situações a que fizemos referências. É uma das mais avançadas leis de
proteção ao consumidor no mundo todo. Ela está fundada em princípios gerais
que, se bem observados e seguidos, não pedem mais decretos e são um ótimo guia
de boas práticas, inclusive da publicidade e do marketing.
O
desafio que vivemos neste momento de expansão de serviços é, portanto, de
passarmos das melhores leis para as melhores práticas.
A
importância de uma familiarização do profissional de marketing e publicidade
com os direitos do consumidor não é um fator que se deva desprezar nessa
perspectiva de melhora e aprimoramento do mercado.
Por
Carlos Thadeu C. de Oliveira
Fonte
Idec