terça-feira, 14 de janeiro de 2014

PROFISSIONAIS ENVIAM SEUS CURRÍCULOS COMO MALA-DIRETA

Diante do uso de CVs sem critério de seleção, empresas adotam cartas de motivação para melhorar filtragem dos candidatos

A empresária Julianna Antunes recebeu o currículo de 90 interessados, ao anunciar uma vaga para sua consultoria de sustentabilidade. Respondeu um por um, pedindo que enviassem uma carta de motivação. Resultado: menos de dez retornos. Diagnóstico: cada vez mais profissionais tratam seus currículos como mala-direta, enviando-os a todos os anúncios que aparecem, sem identificar se estão interessados na cultura da companhia ou se têm o perfil solicitado. Diante disso, empresas e recrutadores adotam formas de fazer um filtro mais preciso, o que é possível, por exemplo, via cartas de motivação e apresentação, prática já bastante comum no mercado de trabalho americano.
— Quando precisam elaborar alguma coisa para se candidatar a uma vaga, as pessoas não querem ter trabalho e sair do piloto automático. Por isso, recebi poucas cartas — acredita Julianna, que atua com engenharia de processos na AS Estratégia e Gestão Sustentável. — Há uma influência da geração Y nesse cenário, mas é algo generalizado em função do momento de pleno emprego. O profissional às vezes recebe duas ou três propostas, então não quer correr atrás.

Desenvolvimento tecnológico, uma das causas
Presidente da consultoria Etalent, Jorge Matos diz que o desenvolvimento da tecnologia ajuda na construção desse cenário:
— No passado, a pessoa teria que ir aos Correios ou à empresa, gastar dinheiro com envio de currículos e transporte. Era uma demonstração de esforço fantástica. Hoje, é só clicar para mandar o currículo para dezenas de opções de empregos. É um processo natural, em função da facilidade atual.
Face a esse quadro, torna-se mais comum a solicitação de cartas de motivação, que não apenas medem se o candidato tem real interesse na vaga, como permite uma avaliação do perfil comportamental mais acertada do que apenas via currículo, dizem os especialistas. O problema é que não é todo mundo que sabe como fazer a tal carta. Ou, ainda pior, de que se trata a tal carta.
— Sei de um caso em que o recrutador havia pedido aos candidatos que enviassem uma carta de próprio punho. Mas houve gente, no processo seletivo, que sequer sabia o que era uma carta de próprio punho — garante Denize Ferreira Rodrigues, consultora de empresas e professora da FGV Management.
Denize diz que há organizações que pedem cartas para medir o nível de português do candidato e testar o aparecimento de algumas palavras-chave, que ajudam a identificar o perfil.
— É, sem dúvida, uma ideia inovadora, quando se tem tempo para fazer o processo seletivo. Mas, quando as empresas recebem muitas inscrições, isso pode acabar ficando inviável — opina Eline Kullock, presidente do Grupo Foco e especialista em comportamento do jovem.
Embora não exclusivo, ela vê o uso do currículo como mala-direta mais frequente na geração Y, conhecida por sua sede de mudança.
— Os indivíduos dessa geração têm por característica não pensar a longo prazo. Além disso, costuma ter baixa resistência à frustração. Por isso, quando se deparam com um processo que exige um pouco mais de trabalho, desistem logo — ressalta a presidente do Grupo Foco.
Eline lembra da história de um jovem que trabalhava numa empresa familiar e decidiu que iria procurar uma vaga numa multinacional. Quando conseguiu, descobriu que o processo decisório era muito mais lento e teria menos chances de crescer rapidamente.
— Ele não avaliou todas as variáveis envolvidas, não pensou no modelo de gestão, só enviou seu currículo. Isso é comum.

Cartas ajudam a diminuir erros na hora de contratar
Nem sempre sair “atirando” o currículo para todos os lados é estratégia negativa. Jorge Matos, presidente da Etalent, diz que, se houver um foco por trás, o candidato não será malvisto. Por exemplo: se a pessoa decide trabalhar como analista de mídias sociais e se candidata para todas as empresas do ramo.
— O recrutador vai perceber que esse indivíduo está realmente focado e determinado a atuar nessa área. Porém, se a pessoa envia os currículos para toda e qualquer vaga, e admite ser de contínuo a presidente da empresa, ela certamente está perdida, e isso vai ser visto como negativo — afirma Matos.

De 20% a 30% faltam às entrevistas
As consultorias que trabalham com recrutamento e seleção costumam considerar uma margem de 20% a 30% de faltosos nas entrevistas e dinâmicas de grupo para uma vaga.
— É muito comum fazermos contato, chamando para uma conversa, e a pessoa simplesmente não aparece, mesmo tendo confirmado presença — conta o presidente da Etalent.
É claro que é possível que o interessado tenha arrumado um outro emprego ou tenha tido um problema pessoal, mas esse índice de faltas também comprova o fato de que, cada vez mais, o currículo é utilizado como mala-direta.
Julianna Antunes, da AS Estratégia e Gestão Sustentável, decidiu que pediria uma carta de motivação aos candidatos depois de ter tido uma experiência negativa de contratação.
— Escolhi uma pessoa de faculdade de primeira linha, e ela não correspondeu às minhas expectativas. Por isso decidi que olharia as cartas de motivação antes do currículo. Às vezes, pelo currículo, eu poderia acabar eliminando uma pessoa sem experiência de trabalho, mas com grande potencial. Com as cartas, diminuo minhas chances de errar na hora de contratar — acredita a diretora da consultoria.
Denize Ferreira Rodrigues, consultora de empresas e professora da FGV Management, vê no uso de cartas uma ferramenta positiva de filtragem. Mas acha que os candidatos precisam se preparar melhor para escrevê-las:
— Acredito que haja um risco grande de a pessoa falar de motivações pessoais, hobbies e planos para o futuro, esquecendo de focar nas motivações para aquele desafio específico.
A professora da FGV acha também que, embora as empresas estejam cada vez mais preocupadas em contratar profissionais com o “perfil comportamental adequado”, os candidatos ainda não perceberam essa mudança de paradigma — o que cria, inclusive, uma “pasteurização dos currículos”.
— As pessoas precisam atentar mais para o intangível — conclui Denize.

Fonte O Globo Online