Diante do uso de CVs
sem critério de seleção, empresas adotam cartas de motivação para melhorar
filtragem dos candidatos
A empresária Julianna Antunes recebeu o currículo
de 90 interessados, ao anunciar uma vaga para sua consultoria de
sustentabilidade. Respondeu um por um, pedindo que enviassem uma carta de
motivação. Resultado: menos de dez retornos. Diagnóstico: cada vez mais
profissionais tratam seus currículos como mala-direta, enviando-os a todos os
anúncios que aparecem, sem identificar se estão interessados na cultura da
companhia ou se têm o perfil solicitado. Diante disso, empresas e recrutadores
adotam formas de fazer um filtro mais preciso, o que é possível, por exemplo,
via cartas de motivação e apresentação, prática já bastante comum no mercado de
trabalho americano.
— Quando precisam elaborar alguma coisa para
se candidatar a uma vaga, as pessoas não querem ter trabalho e sair do piloto
automático. Por isso, recebi poucas cartas — acredita Julianna, que atua com
engenharia de processos na AS Estratégia e Gestão Sustentável. — Há uma influência
da geração Y nesse cenário, mas é algo generalizado em função do momento de
pleno emprego. O profissional às vezes recebe duas ou três propostas, então não
quer correr atrás.
Desenvolvimento
tecnológico, uma das causas
Presidente da consultoria Etalent, Jorge
Matos diz que o desenvolvimento da tecnologia ajuda na construção desse cenário:
— No passado, a pessoa teria que ir aos
Correios ou à empresa, gastar dinheiro com envio de currículos e transporte. Era
uma demonstração de esforço fantástica. Hoje, é só clicar para mandar o currículo
para dezenas de opções de empregos. É um processo natural, em função da
facilidade atual.
Face a esse quadro, torna-se mais comum a
solicitação de cartas de motivação, que não apenas medem se o candidato tem
real interesse na vaga, como permite uma avaliação do perfil comportamental
mais acertada do que apenas via currículo, dizem os especialistas. O problema é
que não é todo mundo que sabe como fazer a tal carta. Ou, ainda pior, de que se
trata a tal carta.
— Sei de um caso em que o recrutador havia
pedido aos candidatos que enviassem uma carta de próprio punho. Mas houve
gente, no processo seletivo, que sequer sabia o que era uma carta de próprio
punho — garante Denize Ferreira Rodrigues, consultora de empresas e professora
da FGV Management.
Denize diz que há organizações que pedem
cartas para medir o nível de português do candidato e testar o aparecimento de
algumas palavras-chave, que ajudam a identificar o perfil.
— É, sem dúvida, uma ideia inovadora, quando
se tem tempo para fazer o processo seletivo. Mas, quando as empresas recebem
muitas inscrições, isso pode acabar ficando inviável — opina Eline Kullock,
presidente do Grupo Foco e especialista em comportamento do jovem.
Embora não exclusivo, ela vê o uso do currículo
como mala-direta mais frequente na geração Y, conhecida por sua sede de mudança.
— Os indivíduos dessa geração têm por
característica não pensar a longo prazo. Além disso, costuma ter baixa resistência
à frustração. Por isso, quando se deparam com um processo que exige um pouco
mais de trabalho, desistem logo — ressalta a presidente do Grupo Foco.
Eline lembra da história de um jovem que
trabalhava numa empresa familiar e decidiu que iria procurar uma vaga numa
multinacional. Quando conseguiu, descobriu que o processo decisório era muito
mais lento e teria menos chances de crescer rapidamente.
— Ele não avaliou todas as variáveis
envolvidas, não pensou no modelo de gestão, só enviou seu currículo. Isso é comum.
Cartas ajudam a
diminuir erros na hora de contratar
Nem sempre sair “atirando” o currículo para
todos os lados é estratégia negativa. Jorge Matos, presidente da Etalent, diz
que, se houver um foco por trás, o candidato não será malvisto. Por exemplo: se
a pessoa decide trabalhar como analista de mídias sociais e se candidata para
todas as empresas do ramo.
— O recrutador vai perceber que esse indivíduo
está realmente focado e determinado a atuar nessa área. Porém, se a pessoa
envia os currículos para toda e qualquer vaga, e admite ser de contínuo a
presidente da empresa, ela certamente está perdida, e isso vai ser visto como
negativo — afirma Matos.
De 20% a 30% faltam às
entrevistas
As consultorias que trabalham com
recrutamento e seleção costumam considerar uma margem de 20% a 30% de faltosos
nas entrevistas e dinâmicas de grupo para uma vaga.
— É muito comum fazermos contato, chamando
para uma conversa, e a pessoa simplesmente não aparece, mesmo tendo confirmado
presença — conta o presidente da Etalent.
É claro que é possível que o interessado
tenha arrumado um outro emprego ou tenha tido um problema pessoal, mas esse índice
de faltas também comprova o fato de que, cada vez mais, o currículo é utilizado
como mala-direta.
Julianna Antunes, da AS Estratégia e Gestão
Sustentável, decidiu que pediria uma carta de motivação aos candidatos depois
de ter tido uma experiência negativa de contratação.
— Escolhi uma pessoa de faculdade de
primeira linha, e ela não correspondeu às minhas expectativas. Por isso decidi
que olharia as cartas de motivação antes do currículo. Às vezes, pelo currículo,
eu poderia acabar eliminando uma pessoa sem experiência de trabalho, mas com
grande potencial. Com as cartas, diminuo minhas chances de errar na hora de
contratar — acredita a diretora da consultoria.
Denize Ferreira Rodrigues, consultora de
empresas e professora da FGV Management, vê no uso de cartas uma ferramenta
positiva de filtragem. Mas acha que os candidatos precisam se preparar melhor
para escrevê-las:
— Acredito que haja um risco grande de a
pessoa falar de motivações pessoais, hobbies e planos para o futuro, esquecendo
de focar nas motivações para aquele desafio específico.
A professora da FGV acha também que, embora
as empresas estejam cada vez mais preocupadas em contratar profissionais com o “perfil
comportamental adequado”, os candidatos ainda não perceberam essa mudança de paradigma
— o que cria, inclusive, uma “pasteurização dos currículos”.
— As pessoas precisam atentar mais para o
intangível — conclui Denize.
Fonte O Globo Online