Reconhecidas
como fonte de boa parte dos conflitos em condomínio por unidades autônomas, as
garagens são submetidas a uma infinidade de conceitos que vão desde o simples
direito de estacionamento de veículos, regulado por convenção de condomínio, à
perfeita individualização de unidade autônoma, com matrícula própria no
Cartório de Registro de Imóveis.
Sem
dúvida, os problemas com origem no uso das garagens encontrados na convivência
condominial têm seu nascimento numa legislação que aborda o tema sem resolvê-lo
conceitualmente.
Uma
tese defendida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal de Justiça Nelson
Jobim diz, em termos resumidos, que o Legislativo brasileiro usa como principal
ferramenta a polissemia, para fugir dos inúmeros impasses que envolvem
definições polêmicas, ainda mais quando estas atingem interesses específicos.
Assim, são escolhidos conceitos com significações amplas, de preferência
adicionados a sentenças ambíguas, tendo como único objetivo abordar o tema sem
resolvê-lo. Como Pilatos, o Legislativo brasileiro lava as mãos e transfere o
entendimento à sociedade e, nos conflitos, ao Judiciário, insinua Jobim.
É
o caso das garagens em edifícios. A Lei 4.591 de 16 de dezembro de 1964, passa
pelo tema "garagens" de modo superficial. Diz a alínea "p"
do art. 32 (alínea acrescida a este artigo pela Lei 4.864 de 29/11/1965), que
deve o incorporador apresentar, quando do ato de registro de incorporação no
Cartório de Registro de Imóveis, o documento assim descrito:
"p) declaração acompanhada de plantas
elucidativas sobre o número de veículos que a garagem comporta e os locais
destinados à guarda dos mesmos."
Não
repetiu aqui o legislador a clareza expressa na alínea "d" do mesmo
artigo, quando exige a apresentação dos projetos de construção devidamente
aprovados pelas autoridades competentes.
A
exigência de declaração e de plantas elucidativas, embora sugira um compromisso
público do incorporador, ignora o procedimento normal de aprovação de projetos
no qual ao município é destinada a responsabilidade de normalizar, analisar e
exigir condições mínimas da área projetada para determinado fim.
A
Lei 4.864 ainda exime o oficial de registro de imóveis - como não poderia
deixar de ser - de responder pela exatidão da declaração em pauta, desde que
esta seja assinada pelo profissional responsável pela obra. No caso da
responsabilidade profissional, entende-se que seja a responsabilidade relativa
ao projeto arquitetônico, que deverá considerar todos os elementos construtivos
ao definir as vagas de estacionamento, para seu perfeito funcionamento.
Estas
questões tratadas sem objetividade em seu entendimento técnico-legal teriam uma
clara conceituação se o "órgão competente", no caso das garagens o
município, fosse chamado ao processo com a simples menção de plantas aprovadas
e não meramente "elucidativas".
É
necessário, neste caso, que o município informe em seus alvarás de aprovação de
projeto e construção (para Incorporações Imobiliárias) e alvarás de habite-se
(para Instituições de Condomínio) o número de unidades autônomas aprovadas, o
número de vagas de garagens e sua natureza, e as áreas de uso em comum, além
das informações quantitativas de áreas. Isto faz parte do compromisso de
ordenação urbana destinada por lei aos municípios, mas nem sempre tratado com a
responsabilidade exigida.
O
que temos como regra é a emissão de alvarás com informações sumárias,
declarando áreas totais construídas ou a construir. Esta deficiência é
reconhecida na própria lei, quando sugere a apresentação de declarações
complementares com o objetivo de definir aquilo que deveria ter sua
caracterização nos documentos oficiais.
A
situação dos oficiais de registros de imóveis, por outro lado, é extremamente
incômoda, no caso de registro de incorporação ou de instituição e especificação
de condomínio. Num primeiro momento, ao analisar a documentação que lhe é
apresentada pode, por irregularidade formal de validade ou ilegalidade na
documentação, solicitar por escrito que os problemas encontrados sejam
corrigidos e resolvidos pelo interessado. Muitas vezes desamparado e não
atendido em suas exigências, não resta ao oficial senão suscitar dúvida e,
mesmo não sendo parte interessada, assumir informalmente a única função em todo
o processo a ninguém destinada: a de ordenador de procedimentos que juntam
elementos legais, técnicos e normativos para a perfeita caracterização do
registro.
Diante
da importância que assume a garagem na vida condominial, não se pode mais
aceitar estas omissões de responsabilidades.
Direito
a estacionamento, vagas de garagem, box de garagem, estacionamento descoberto,
guarda de veículos, garagem coletiva, vaga de garagem vinculada... Denominações
que dão origem às mais diversas dúvidas e interpretações doutrinárias. Na
prática, são tantos os "nomes" para um mesmo elemento objeto de
direito que terminam ocorrendo os fatos tão bem analisados por J. Nascimento
Franco:
Aproveitando-se de todas
essas brechas, os incorporadores menos escrupulosos lançam mão dos mais
diversificados artifícios para vender vagas imaginárias, porque existentes
apenas nos croquis e memoriais descritivos, mas que ninguém consegue
materializar no solo, quando a construção termina e o edifício é entregue aos
condôminos. (IN Problemas do direito imobiliário. Revista IRIB 3/35)
Cabe-nos
analisar, então, a título de contribuição para um melhor entendimento do
assunto, os diversos aspectos da definição de "garagem" com uma visão
prática. Neste sentido, o Setor de Habitação da Caixa Econômica Federal muito
tem contribuído para uma normalização informal de procedimentos registrais.
Contudo, a C.E.F. acaba intervindo num campo cuja atuação não lhe é cabida. Se
há nesta intervenção a melhor das intenções, também deve ser levado em conta
que, por não ter atribuição, a CEF pode exigir sem justificar. E assim estamos
diante de um novo risco, pois se estabelecem procedimentos por costume, cuja
origem não é dada por uma conceituação amplamente discutida, de consenso e
formalizada.
A
análise que faremos terá como base a investigação das características
construtivas das áreas destinadas ao estacionamento de veículos. Isto, ao nosso
ver, é o melhor modo de tratar o assunto.
As vagas descobertas no terreno
Se
permitido pela municipalidade, um espaço do terreno pode ser destinado ao
estacionamento de veículos. Demarcadas as vagas ou não, os espaços são objetos
de um direito regulável apenas pela Convenção de Condomínio. Estas áreas, por
não configurarem áreas construídas, não podem ser consideradas como unidade
autônoma e nem mesmo como assessórios das unidades autônomas. Caracterizar
áreas deste tipo como perfeitamente definidas seria estabelecer desmembramento
irregular do lote, criando o problema adicional de servidão de passagem para
cada vaga.
Tecnicamente,
em relação à discriminação em quadros de áreas construídas, objeto da Lei
4.591/64, art. 32, alínea "e" (normalizados pela NBR 12.721), este
tipo de vaga não pode ser lançado no cômputo de áreas construídas. Para fins de
avaliação de construção poderá ser lançado apenas como item de custo na
planilha III (em atendimento à alínea "h" da Lei citada), se
apresentar custo específico para sua demarcação e localização.
O
estacionamento descoberto, portanto, é um modo precário de guarda de veículos.
Perguntar-se-ia qual o objetivo, então, da inclusão deste tipo em nossa
análise. Simplesmente porque, como diz o texto de J. Nascimento Franco, não são
poucos os incorporadores e proprietários de edifícios que se utilizam deste
expediente para simular a existência de vaga vinculada à unidade autônoma, e
muitos são os códigos municipais de obras que se satisfazem com este tipo de
estacionamento de veículos.
As vagas descobertas sobre área construída
Embora
não muito comum, pode existir estacionamento sobre área construída do edifício.
Se computada como área construída, incluída na área total do edifício, este
tipo de vaga tem o mesmo tratamento das vagas cobertas a seguir analisadas.
As vagas cobertas
Vagas
cobertas, por configurarem áreas construídas, permitem uma melhor
caracterização. Podem ser tratadas como área de uso em comum, área vinculada à
unidade autônoma - como assessório desta - e, finalmente, como unidade autônoma
propriamente dita.
A
garagem com vagas indefinidas caracterizadas como de uso em comum propõe
problemas iguais ou maiores aos causados pelas existências de vagas
descobertas. Incluída, a garagem, nas partes de uso em comum, o direito de uso
só pode ser tratado na Convenção de Condomínio além, é claro, de causar dúvidas
sobre a divisão e direito de uso. Uma questão comum proposta é: quem tem maior
fração ideal tem direito a maior do número de vagas?
Com
certeza, embora presente em muitos registros de incorporação e instituição de
condomínio, esta é uma forma de desvencilhar-se do problema na fase de
construção ou na de venda das unidades e transferi-lo para o funcionamento do
condomínio.
Em
relação às planilhas-modelo da NBR 12.271, se assim considerada, a área
destinada à garagem será parte do valor da área real lançada na coluna 15 do
quadro I, englobada no somatório de todas as áreas de uso em comum.
No
caso de vagas definidas, duas formas se apresentam. A primeira delas diz
respeito às áreas consideradas como assessório da unidade autônoma. Neste caso,
área de estacionamento e área de circulação e acesso vinculam-se à área privativa
da unidade autônoma. Constará, assim, numa mesma matrícula o principal - o
apartamento, a sala comercial, a loja, etc.- e o assessório construído e
designado como vaga identificada no local. Para sua perfeita identificação, é
preciso ainda que conste descrição de sua localização no edifício, pavimento e
confrontações com outras áreas e vagas. É interessante destacar que há
referências, em muitos estudos sobre este tema, que consideram possível a
indefinição destas áreas mesmo quando vinculadas à unidade autônoma. Não é isto
senão um modo de estender as possibilidades de confusão.
A
área considerada como assessório aparecerá na planilha II, na coluna 28, nos
quadros-modelos da NBR 12.271, vinculada à unidade autônoma descriminada na
coluna 19 e cujo valor representará a área demarcada para estacionamento somada
às suas parcelas relativas à circulação e acesso.
A
segunda forma de classificação das vagas cobertas definidas é aquela onde são
tratadas como unidades autônomas, com fração ideal de terreno própria, sendo
objeto de matrícula específica no Cartório de Registro de Imóveis. Sem dúvida é
o modo mais claro e objetivo. Tendo matrícula própria, a vaga terá todas as
características de um bem imóvel único (princípio da unitariedade - cada imóvel
uma matrícula), perfeitamente individualizado.
Se
classificada como unidade autônoma, terá sua área privativa (área destinada ao
estacionamento do veículo) definida na coluna 28; a área de uso em comum
(preferencialmente tomada a partir da divisão de áreas de circulação entre as
vagas e acessos) será discriminada na coluna 28; e a área real total, na coluna
37, tudo isto nos quadros-modelo II da NBR 12.271.
Cabe
aqui destacar que as informações sobre a localização das áreas reais finais em
planilhas detalhadas acima são frutos de minha experiência profissional. Como a
NBR 12.721 também não se atém a estes conceitos específicos, não há uma
uniformidade proposta e verificada na apresentação das áreas de garagem em suas
diversas formas. Contudo, por ter origem na experiência profissional tem-se
mostrado como uma boa opção na forma de leitura, considerando a interface de
conceitos técnicos e legais, e diante da necessidade de clara identificação do
modo adotado para classificação das áreas destinadas ao estacionamento de
veículos.
Das
formas possíveis e analisadas, é quase consenso em estudos doutrinários de que
só merecem tratamento formal e normativo as vagas tratadas como assessórios
(determinadas) e as tomadas como unidade autônoma.
Em
conclusão, lembramos que os problemas relativos a garagens seriam reduzidos (e
muito) se todas estas questões fossem abordadas pelos códigos municipais de
obras reforçados por dados da obra perfeitamente discriminados em alvarás,
sejam estes de construção ou de habite-se.
Se
a questão é quase insolúvel diante da diversidade das legislações municipais,
cabe à ABNT estabelecer norma ou complementação de norma existente que
padronize os procedimentos já enunciados em Lei. Caso contrário, de acordo com
a tese do ministro Jobim, a Lei continuará sendo apenas um sumário de capítulos
escritos a cada contenda.
Por
Paulo Andres Costa
Fonte
Jus Navigandi