A
inclusão de cláusulas de conservação de imóvel nos contratos de locação tem se
mostrado uma prática frequente no mercado imobiliário. Essa cláusula pode estar
inserida no contrato de locação com as mais variadas denominações, sendo mais
facilmente encontrada com o nome de Fundo de Conservação do Imóvel (FCI) ou
Taxa de Conservação do Imóvel (TCI).
Tal
cláusula prevê o pagamento de um percentual sobre o valor do aluguel, que varia
entre os patamares de 3% a 5%. Esse valor destina-se a formar uma poupança em
poder do locador para, ao término do contrato de locação, assegurar a devolução
do imóvel nos termos em que fora locado. Havendo a resilição contratual sem
reparos a serem feitos no imóvel, os valores cobrados são restituídos,
corrigidos monetariamente.
Percebe-se
a existência de locatários que gostam dessa condição, posto que, ao término da
relação locatícia, existem despesas a serem suportadas: pintura do imóvel;
pequenos reparos; despesas com mudança... Assim sendo, o pagamento de um valor
percentual mensal ameniza os gastos futuros advindos da resilição contratual.
Os
locadores apreciam tal cláusula em virtude de, não raras vezes, ao término um
contrato de locação o imóvel deve ser restituído com pequenos reparos a serem
feitos. Esses pequenos reparos, quando não realizados pelo locatário, acabam se
tornando prejuízo para o locador, posto que uma demanda judicial lhe custará
mais caro e mais demorado do que arcar com os custos de reparo do imóvel.
O
presente artigo não tem a pretensão de julgar a cláusula de conservação do
imóvel como sendo benéfica ou maléfica. Mas, sim, identificar qual a sua
natureza jurídica e quais as suas implicações para o contrato ao qual pertença.
Garantia locatícia
Etimologicamente,
o termo garantia advém do francês garantie, que significa ato ou efeito de
proteger, de assegurar, afiançando-se, por isso mesmo, que toda garantia é uma
segurança, uma proteção, que se estabelece em favor de alguém[1].
Para
Michele Frangali, a garantia encontra seu fundamento “no acrescer ou no
reforçar, a um determinado credor, a probabilidade de ser satisfeito, depois do
vigor normal de uma única obrigação ou do poder de agressão que esta obrigação
atribui”.
Nas
palavras de Tucci e Villaça Azevedo, “garantia é o reforço jurídico, de caráter
pessoal ou real, de que se vale o credor, acessoriamente, para aumentar a
possibilidade de cumprimento, pelo devedor, do negócio principal”.[2]
Não
sendo observado o parágrafo único do artigo 37 da lei de locações, estará
incorrendo o locador a uma penalidade que vem disciplinada no artigo 44, inciso
II, da mesma lei.
Das
garantias locatícias será exposta uma breve definição de cada uma delas, tendo
um enfoque maior no objeto de estudo deste artigo jurídico, que é a caução.
A
fiança é a forma de garantia ainda mais utilizada no mercado imobiliário.
Normalmente nos contratos de locação de imóveis o proprietário exige a
responsabilidade do fiador até a efetiva devolução das chaves. Logo, vincula-se
as obrigações que fluírem após a renovação do contrato. Ela é garantia
estritamente pessoal. Ao afiançar o locatário, o fiador assume pessoalmente a
obrigação de solver a dívida do afiançado, caso ele não a honre a tempo e hora.
A fiança pode ter prazo determinado, como ainda valor limitado, sem o que
compreenderá todos os acessórios da dívida principal, inclusive despesas
judiciais.
Fiança
por definição legal é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga por outra, para
com o seu credor, a satisfazer a obrigação, caso o devedor não a cumpra.
Já
o seguro de fiança locatícia é uma modalidade de garantia convencional que
deverá ser contratado junto a uma companhia seguradora, o qual abrange os
encargos contratuais podendo ser limitado a um valor pré-determinado.
A
caução, nas definições de De Plácido e Silva, significa que “Consoante sua
própria origem, do latim cautio, de modo geral, quer expressar, precisamente, a
cautela que se tem ou se toma, em virtude da qual certa pessoa oferece a outrem
a garantia ou segurança para o cumprimento de alguma obrigação”.
Ao
final da locação, não restando qualquer débito por parte da obrigação pactuada,
o locatário poderá fazer o levantamento do depósito com os seus acréscimos –
tal qual os valores de Fundo de Conservação de Imóvel, que, a nosso ver, é uma
garantia da espécie caução.
Consequências da dupla garantia
Sendo
certa a abusividade da existência de duas modalidades de garantia, temos como
primeira consequência prática a nulidade de uma delas e posteriormente a
aplicação de uma sanção penal de prisão simples de cinco dias a seis meses, a
qual pode ser convertida em sanção econômica ao Locador.
É
de bom alvitre salientar que a infração legal cometida pela dupla garantia não
acarreta em nulidade do contrato de locação, mas apenas da garantia locatícia
em excesso.
O
Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o parágrafo único do artigo 37 da Lei
do Inquilinato, assim se posicionou:
A exigência de dupla
garantia em contrato de locação não implica a nulidade de ambas, mas tão
somente daquela que houver excedido a disposição legal. [...] STJ. Resp.
868.220/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª turma, j. 27/09/2007, DJ
22/10/2007.
Posição
mais acertada não poderia ter sido proferida pelo STJ sobre o tema. A
inteligência da lei se dá em manter uma paridade contratual entre as partes,
evitando que se exija do locatário diversas modalidades de garantia e ao mesmo
tempo, preservando a direito do locador em ter um respaldo de que a obrigação
contraída será honrada.
Tendo
em vista que o contrato de locação permanece válido e que uma das garantias
deve ser considerada nula, o conflito se dá em saber qual das modalidades de
garantia deve prevalecer em detrimento da outra.
Analisando
o caso concreto poderemos nos deparar com duas opções: contrato de adesão ou
contrato livremente formulado entre as partes.
Se
acaso estivermos diante de um contrato de adesão pré-formatado pelo locador,
onde o locatário apenas adere às suas condições sendo-lhe drasticamente
reduzido o poder de negociação das cláusulas contratuais, deve-se facultar aos
aderentes (locatários e eventuais fiadores) sobre qual cláusula deve ser tida
como nula.
Tal
premissa se deve à norma geral de que nos contratos de adesão as cláusulas
terão interpretação favorável ao aderente (artigo 423 do Código Civil
Brasileiro). Apenas analisando o caso concreto é que se poderá concluir se tal
contrato é ou não é um contrato de adesão.
Não
sendo o contrato de locação discutido um contrato de adesão poder-se-ia
discutir sobre a liberdade contratual e o princípio pacta sund servanda,
acarretando em legalidade à clausula de conservação do imóvel e sua
co-existência com outras modalidades de garantia locatícia.
Embora
tal argumento aparente ser convincente para eximir o locador de sua
responsabilidade civil e criminal, bem como para manter válidas a pluralidade
de garantias existentes no contrato de locação, esbarra-se na prevalência da
norma pública à norma privada.
Não
podem as partes dispor de forma contrária à lei. Por certo que os contratos
livremente pactuados representam a convergência de vontades dos contraentes.
Todavia, tal convergência de vontades não pode afrontar o direito positivado,
violando normas de ordem pública.
A
própria Lei 8.245/91 dispõe, de forma clara e objetiva, a sua aplicabilidade em
toda em qualquer relação locatícia de imóveis urbanos, consoante artigo de
número 45.
Dessa
forma, aplicando-se in totum a Lei 8.245/1991, continuamos a ter a impossibilidade
de mais de uma modalidade de garantia locatícia. O impasse pode ser resolvido
conforme o entendimento pacífico dos tribunais brasileiros no sentido de se
excluir a mais gravosa ao locatário, tendo como fundamento legal a analogia do
artigo 620 do Código de Processo Civil.
Passamos
agora a analisar uma terceira maneira de verificar qual das modalidades de
garantia deve prevalecer, independente do contrato ser ou não ser um contrato
de adesão. Esta terceira forma leva em consideração o quesito temporal. Ou seja, a garantia contratual que primeiro
surtiu efeito no mundo jurídico é a garantia que deve prevalecer.
Esse
raciocínio leva em consideração a aplicação prática da modalidade de garantia.
A primeira modalidade de garantia utilizada na prática, independentemente de
sua eficácia, é a que deve continuar vigorando, devendo ser declarada nula de
pleno direito a garantia adjacente.
Embargos à execução de
título extrajudicial - locação - cerceamento de defesa - ...omissis - fiança e caução, esta sob a alcunha de
"taxa de conservação" - dupla garantia vedada pelo § único do artigo
37 da lei de locações, sem cominação legal de sanção expressa ao locador -
por falta de previsão legal, deve-se invalidar somente a garantia instituída em
excesso - critérios de exclusão
doutrinário e jurisprudencial: ordem sequencial e aplicação do artigo 884,
caput do código civil - a convergência de ambos aponta para a nulidade da
fiança - benfeitorias - recurso conhecido e parcialmente provido”. TAPR –
AC: 209426-4, Rel. Des. Anny Mary Kuss, 6ª câmara cível (extinto TA), J.
14/10/2002, DJ 25/10/2002.
Grifo nosso
AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO
JURÍDICO - ARREMATAÇÃO - CONTRATO DE
LOCAÇÃO - DUPLA GARANTIA - FIANÇA, PRESTADA ANTERIORMENTE, E CAUÇÃO - DECISÃO
QUE INVALIDA A CAUÇÃO, PREVALECENDO A FIANÇA, POSTO PRESTADA EM PRIMEIRO LUGAR.
PERMANECENDO O CONTRATO LOCATIVO COM GARANTIA, NO CASO A FIANÇA,
VERIFICA-SE A CARÊNCIA DA AÇÃO. FALTA DE INTERESSE DE AGIR - SENTENÇA MANTIDA -
APELAÇÃO IMPROVIDA. TJPR - AC 370195-1, Rel. Des. Luiz Antônio Barry, 11ª
câmara cível, j. 22.11.2006, DJ 12/01/2007.
Grifo nosso
Nesta
última jurisprudência mencionada o emérito desembargador Luiz Antônio Barry
proferiu seu voto da seguinte forma:
Da garantia prestada. Não
obstante a revelia verificada, o douto juízo a quo entendeu de adentrar ao
mérito propriamente dito, examinando a dupla garantia verificada no contrato de
locação. E, de se ver, a Lei do Inquilinato veda, no seu art. 37, § único, o
oferecimento de garantia em duplicidade no mesmo contrato de locação. A questão
de fundo consubstancia-se em estabelecer qual das garantias prestadas em
duplicidade deve prevalecer: a caução ou a fiança. Doutrina e jurisprudência
assentaram-se no sentido de que em tais casos deve prevalecer a garantia
principal, nesse sentido fala-se em garantia prestada em primeiro lugar,
devendo ser desconsiderada a garantia prestada em excesso.
Por
essa forma de se identificar qual a garantia válida teremos que a cláusula de
conservação de imóvel, sendo dinheiro líquido do locatário em poder do locador
acaba por ser uma garantia que suporta os danos da inadimplência mesmo antes
dela ocorrer.
Desta
feita, a partir do primeiro minuto de atraso do locatício, os valores
caucionados em poder do locador já estão suportando os efeitos da mora, sendo
portanto, a modalidade de garantia que deve persistir no contrato de locação.
Penalidade
A
sanção penal prevista, via de regra, é convertida em sanção econômica, motivo
pelo qual nosso estudo se limitará a ela. Havendo inadimplência de obrigações
pecuniárias do locatário este crédito decorrente da dupla garantia deve ser
compensado, nos termos do artigo art. 368 do Código Civil.
Em
que pese ser o locatário o titular do crédito oriundo da infração legal
cometida pelo locador, não há empecilhos de nenhuma ordem que tal crédito seja
solicitado pelos fiadores em eventual peça de embargos à execução.
Como
vimos anteriormente, havendo a cláusula de conservação de imóvel e fiança a
garantia a ser tida como válida é a cláusula de conservação do imóvel. Dessa
forma, nos casos em que o fiador venha a ser demandado judicialmente para pagar
débitos do contrato de locação, ele poderá pleitear sua ilegitimidade passiva
bem como requerer a penalidade econômica a ser imposta ao locador em favor do
locatário, requerendo a compensação de valores.
A
nosso ver, tal requerimento deve ser feito de forma subsidiária ao pedido de
ilegitimidade passiva. Isso pois, no caso remoto do magistrado não se convencer
de que a garantia da fiança é a garantia em excesso, o fiador continuará a
fazer parte da demanda sendo responsável pelos débitos do locatário.
Dessa
forma, sua participação na lide seria direta. O pleito de que se aplique a
norma de ordem pública a fim de se ter a compensação de valores (crédito
decorrente da multa com os valores devidos pelo locatário) para que o valor a
ser suportado por ele seja reduzido está amparado em nosso devido processo
legal pelo princípio da ampla defesa.
Ante
todo o exposto pode-se concluir que a existência de cláusula de conservação do
imóvel constitui uma garantia locatícia que se assemelha à caução, feita de
forma parcelada. Sendo uma garantia locatícia, impede que seja utilizada uma
segunda modalidade de garantia. Dessa forma, impede-se que seja incluído neste
contrato fiadores ou seguro fiança.
Havendo
no mesmo contrato duas modalidades de garantia, uma delas deve ser considerada
nula de pleno direito. Analisando o caso concreto é que se poderá chegar a uma
conclusão de qual garantia locatícia deve ser anulada.
Os
parâmetros para se averiguar qual a garantia que permanece válida são três: o
contrato de locação é de adesão ou convergência de vontades; qual a garantia
mais gravosa ao locatário; e, por fim, qual modalidade de garantia surtiu
efeitos no mundo jurídico em primeiro lugar.
Uma
vez identificada qual garantia permanece e qual é nula passa-se à aplicação da
sanção em decorrência da infração legal. Tal sanção econômica será, conforme os
critérios do magistrado, de três a 12 vezes o valor do aluguel revertida em
favor do locatário.
Essa
sanção econômica decorre de norma de ordem pública, podendo ser arguida pelo
próprio locatário ou pelos fiadores que porventura figurem no contrato de
locação.
Como
exposto anteriormente, só se justifica o pleito dos fiadores para que haja a
compensação de valores com os débitos do locatário a fim de se ver diminuída
sua dívida, posto que o titular do crédito desta multa é, indiscutivelmente, o
locatário.
[1] TUCCI, Rogério Lauria e AZEVEDO, Alvaro
Villaça. Tratado da locação predial urbana. 1 ed., 3 tiragem. São Paulo:
Saraiva, 1988, p. 329-30.
[2] Ibid, p. 329-31.
Por
Flávio Henrique Eickhoff e Taisa Pavin Wendrechovski
Fonte
Consultor Jurídico