segunda-feira, 3 de outubro de 2011

JURIDIQUÊS NO BANCO DOS RÉUS

Campanha da Associação dos Magistrados para simplificar a linguagem jurídica reacende o debate sobre a prática da Justiça no país

Aberta a temporada de caça a um antigo inimigo da Justiça, que a corrói por dentro tanto quanto a morosidade nas sentenças e a estrutura arcaica dos tribunais. É o juridiquês, o uso de um português arrevesado, palavrório cheio de raciocínios labirínticos e expressões pedantes.
- O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos freqüentadores do átrio forense.
É nesse juridiquês, digamos, castiço que o desembargador Rodrigo Collaço, presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) resume a Campanha Nacional pela Simplificação da Linguagem Jurídica, que a entidade presidida por ele patrocina. O exemplo de fina ironia está na Tribuna do Direito, e ilustra a iniciativa dirigida a operadores do Direito, estudantes e faculdades de Direito, juízes e jornalistas.
A proposta da entidade é promover um vocabulário mais simples, direto e objetivo para aproximar a sociedade da Justiça e da prestação jurisdicional. Para isso, a AMB programa uma série de ações. Pretende realizar concursos para estudantes, que premiarão os melhores projetos de simplificação da linguagem, e para os magistrados que desenvolvem em suas peças jurídicas formas mais simplificadas de linguagem. A entidade também promove palestras com o pro fessor Pasquale Cipro Neto em todo o país e, para os profissionais de imprensa, editou um livreto com glossário de expressões jurídicas e explicações sobre o funcionamento da Justiça brasileira.


Redoma legal
A idéia da campanha surgiu após a AMB ter encomendado uma pesquisa ao Ibope em 2003, para avaliar a opinião da sociedade sobre o Judiciário.
- O trabalho revelou que, além da morosidade nos processos, o que incomoda a população é a linguagem jurídica usada por magistrados, advogados, promotores e demais operadores do Direito - conta Collaço.
A campanha tem a adesão integral de Hélide Santos Campos, professora da Unip de Sorocaba, que leciona linguagem jurídica há sete anos. Ela busca mostrar aos alunos a diferença entre o que é técnico e o que é desnecessário, rebuscado, arcaico e não traz contribuição ao texto em si.
- Dou exemplos de textos rebuscados e prolixos, apresento aos alunos sinônimos, palavras que transmitem o mesmo significado, porém de um modo mais acessível a eles e ao cidadão comum, que não pertence à área do Direito - explica.
A didática de Hélide não tem segredos.
- Parágrafos são eliminados, repetições desnecessárias  dão lugar à ênfase, mas com palavras mais fáceis. O texto fica enxuto, sem que seu sentido seja prejudicado e os termos técnicos sejam deixados de lado.

 
Português hostil
O português enviesado faz da Justiça um território hostil ao leigo.
- Decisões incompreensíveis são como o câncer: ninguém pode ser a favor. Os advogados, principalmente, poderiam desistir de entupir suas petições de argumentos inúteis e sintetizar seus pedidos - brinca Márcio Chaer, advogado, jornalista e diretor de redação do site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br).
Chaer observa que o veredicto contra o juridiquês não deveria valer para todos os casos e, portanto, a regra da simplificação não pode ser inflexível.
- Há ministros no STF que fazem de seus votos capítulos enciclopédicos. Contudo, esses votos são tão preciosos que acabam por nortear o Direito no país todo - exemplifica.
A necessidade de tornar a linguagem jurídica mais acessível não chega a ser um consenso no meio. Gente como Eduardo Ferreira Jardim, advogado e professor da Universidade Mackenzie, de São Paulo, faz questão de cultivar o que considera uma riqueza do vernáculo.
- Caminho na contramão dos que cogitam simplificar a linguagem dos utentes do Direito. A bem ver, não merece prosperar o argumento contrário à linguagem jurídica tradicional, a qual, embora permeada de erudição, bem assim de expressões latinas e técnicas, é induvidosamente o meio de comunicação estabelecido entre os operadores do Direito, a exemplo de advogados, procuradores, promotores e magistrados.
Jardim é voz quase solitária: a opinião corrente é que a simplificação da linguagem jurídica não só é útil, como aconselhável. O busílis é como saber o ponto de equilíbrio entre simplicidade e precisão. O lingüista, dicionarista e professor da Unesp de Araraquara Francisco da Silva Borba acredita que não há como escapar do tecnicismo.
- A linguagem técnica tem de ser exata. Ela não pode ser ambígua nem conotativa. O jargão jurídico é opaco para o leigo, mas não para o profissional - ensina o autor do Dicionário Unesp do Português Contemporâneo.
Borba lembra que a dificuldade de entendimento do cidadão comum não se restringe à área do Direito, a exemplo da Medicina, cujo jargão muitas vezes é incompreensível para quem não é do ramo.
- Toda profissão e atividade tem seu jargão. Isso é inevitável. O que é nocivo é o uso de palavras ou expressões rebuscadas quando há outras que dizem a mesma coisa - concorda Márcio Chaer.
 
Riscos na simplificação
O advogado Sabatini Giampietro Netto acha perfeitamente possível combinar rigor técnico e concisão.
- O profissional pode referir-se, em sua petição, aos "fundamentos adotados pela respeitável sentença de primeira instância", para isso gastando oito palavras, ou simplesmente escrever "tese monocrática", que diz a mesma coisa com duas. A locução é muito técnica? É. Mas a técnica, usada corretamente, torna as coisas mais rápidas e mais compreensíveis para os operadores envolvidos - diz Netto.

A ser considerado tal ponto de vista, nem todo juridiquês é ruim. "Ruim é o pernosticismo", diz Giampietro Netto. E a rigidez.

 
- Não gostaria, como profissional do Direito, de ter de seguir algo como um Manual de Redação ao redigir petições. Não apoiaria uma tentativa de instaurar uma espécie de 'politicamente correto' nos textos jurídicos, a institucionalização de um Index Verborum Prohibitorum para sentenças e petições. A essência do trabalho na nossa área é a liberdade de escolha: das teses, dos argumentos... e dos vocábulos.
O perigo da simplificação da linguagem é exceder na dose, alerta Márcio Chaer.
- Não é desejável que conceitos jurídicos construídos e aperfeiçoados ao longo de séculos sejam simplificados, como faz a imprensa quando noticia que o STF mandou a CPI do Mensalão obedecer ao princípio que desobriga o cidadão de incriminar-se. A tradução de que 'a Justiça autorizou o acusado a mentir' traiu o sentido original do conceito e enganou o cidadão.
No entanto, mesmo um defensor do uso habitual do vocabulário dos tribunais, como Eduardo Jardim, entende que a linguagem jurídica precisa ser acessível a quem não é do ramo.
- Se é verdade que o profissional pode e deve adotar uma linguagem própria, não menos verdade é também que deve recorrer à linguagem comum sempre que se relacionar com o cliente ou o público em geral - reconhece.
 
Viés de brasileiro
A proliferação do juridiquês no Brasil pode ter uma explicação sociológica. Para Giampietro Netto, por exemplo, o texto jurídico ilegível é um uso tipicamente brasileiro da língua.
- Compare trabalhos, nas mesmas áreas (e não especialmente em Direito), em italiano, inglês e mesmo em espanhol ou português de Portugal produzidos após a queda do franquismo e do salazarismo. Todo o mundo se exprime com clareza, os conceitos expostos são de fácil entendimento, a linguagem é objetiva e a mensagem é transmitida com a nítida preocupação de chegar à mais ampla quantidade de destinatários - assegura.
 
Democratização
A isso, Giampietro Netto chama de 'democratização da palavra', que coincidiu com a redemocratização de Espanha e Portugal e, nos países de mais forte tradição democrática, "com o despontar de uma consciência acadêmica desejosa de fazer contato com o resto da população". Esse desejo de contato torna a cultura bacharelesca um risco à cidadania e dá sentido à campanha da AMB. 


- Muitas vezes, após uma audiência, as pessoas cercam o advogado com olhar de interrogação, perguntando se ganharam ou perderam a causa. Para a AMB, o cidadão precisa compreender exatamente o significado de uma decisão em que ele esteja envolvido - conta o presidente da entidade.
O esforço de professores de português como Hélide Campos é o de separar o joio do trigo do discurso de futuros advogados, promotores, juízes e desembargadores.
- Os termos técnicos têm de ser mantidos, pois têm significados próprios, singulares. Já os vocábulos rebuscados, os arcaísmos, podem ser substituídos por palavras mais simples, sem prejuízo do significado do texto.
Se ela não estiver pregando no deserto, seus alunos terão ao menos uma das ferramentas necessárias para reviver uma vertente pouco valorizada e quase esquecida do Direito pátrio.
- Tobias Barreto, em pleno século 19, Sampaio Dória, Orlando Gomes, Arruda Campos e Santiago Dantas escreveram com leveza sobre os mais sorumbáticos temas, produzindo textos ao mesmo tempo iluminadores e inteligíveis - lembra Giampietro Netto.
O advogado esclarece, no entanto, que esse time pertence a uma corrente que não 'vingou' na tradição jurídica brasileira. A todos era comum uma visão progressista do Direito, que tampouco prevaleceu.
- Tanto os autores mais permanentes, como Clóvis Bevilacqua e Pontes de Miranda, quanto os mais recentes inclinam- se por uma linguagem enviesada, calibrada com idéias aos borbotões no mesmo parágrafo, dando nó no cérebro do pobre leitor - lamenta.
Os defensores do juridiquês acreditam que simplificar a linguagem jurídica é uma falsa questão, alegando que quem mantém relações com a Justiça é o advogado, não seu cliente. O argumento traz para o centro da discussão um elemento essencial para entender o modo como o mundo do Direito brasileiro manuseia o idioma: a estrutura judiciária que permite uma atuação corporativa.


O artigo 133 da Constituição Federal diz que "o advogado é indispensável à administração da justiça". Para advogados como Giampietro Netto, tal redação criou, na prática, uma reserva de mercado.
- Com uma frasezinha assim curta, o advogado é colocado como o interlocutor obrigatório entre o cidadão e o Poder Judiciário. Ninguém pode ir direto ao juiz e reclamar, só o advogado. Com isso, o jargão jurídico se radicaliza e assume ares estapafúrdios, até por necessidade de legitimação. Atacar o juridiquês é, portanto, um modo torto de atacar a dislexia básica do sistema.

Expressão do sistema
A linguagem seria uma das expressões do sistema. Até a metade do século 20, avalia Giampietro Netto, considerável quantidade de bacharéis ocupava posições de mando do país. Da mais modesta repartição até a Presidência da República, pensar, organizar e executar era quase um monopólio da classe advocatícia.


- Uma visão hierarquizante, típica da Idade Média, mandava que o poderoso não só se vestisse e se alimentasse diferentemente dos demais, mas que também falasse e escrevesse diferente - diz Giampietro Netto.
Teria sido, portanto, uma mistura de corporativismo, bacharelismo e o pedantismo mais conservador que teria gerado o juridiquês, discurso, terminologia e expressão do poder.
Por esse ponto de vista, pouco adiantaria mudar a linguagem se o sistema permanecer igual. Na prática, avalia Giampietro Netto, a campanha da AMB atira no alvo errado.
Para a professora Hélide, o alvo está certo, sim, senhor.
- É inegável que o mundo tem caminhado para uma comunicação rápida e eficaz, mas para muitos a linguagem jurídica parou no tempo. É necessário buscar um caminho divisor, um meio de campo, para evitar a tendência à preguiça de pensar ou de escrever, que cerca a comunicação informatizada, rápida.

O professor Borba se inclui entre os céticos.
- Deve-se combater o rebuscamento. Mas ele depende do usuário da língua, não está ligado ao fato de a linguagem ser jurídica. Faz parte do discurso de cada pessoa, está no uso do idioma. A meu ver, a campanha é inócua.
 A adoção de uma linguagem mais coloquial pelos profissionais da advocacia parece diretamente relacionada à qualidade da produção do Direito e à velocidade no atendimento à população.
O risco de vincular a reforma do jargão à do Judiciário em seu conjunto, no entanto, é o de um objetivo virar pretexto para a paralisia do outro. Assim, a adiada quando não enterrada reforma do Judiciário pode se revelar não só um obstáculo ao alerta da AMB como um motivo para tornar ainda mais remota a comunicação entre a sociedade e os advogados brasileiros.


Por Bias Arrudão