O Código Civil de 2002 prevê, no âmbito da
função social da posse e da propriedade, a proteção da convivência coletiva. No
entanto, a relação entre o direito de propriedade e as regras de convivência
nos condomínios residenciais nem sempre é tranquila.
Segundo o ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, "em se tratando de condomínio edilício,
o legislador, atento à realidade das coisas e ciente de que a convivência nesse
ambiente especial tem muitas peculiaridades, promoveu regramento específico, limitando
o direito de propriedade, visto que a harmonia exige espírito de cooperação, solidariedade,
mútuo respeito e tolerância, que deve nortear o comportamento dos condôminos".
O código estabelece um rol exemplificativo
do que pode ser estipulado por convenção condominial, a qual pode regular as
relações entre os condôminos, a forma de administração e a competência das
assembleias, entre outros aspectos.
De acordo com Salomão, no momento em que se
fixa residência no condomínio de um prédio, é automática e implícita a adesão
às suas normas internas, às quais se submetem todos, para a manutenção da
higidez das relações de vizinhança.
Locação temporária
Nesse confronto de direitos, são diversos os
casos que demandam a intervenção do Judiciário, tendo a jurisprudência do STJ
se firmado no sentido de que a análise de norma condominial restritiva passa
pelos critérios de razoabilidade e legitimidade da medida em face do direito de
propriedade.
Esse foi o entendimento adotado pelo
ministro Salomão na Quarta Turma, ao apresentar seu voto no REsp 1.819.075, cujo
julgamento foi iniciado no último dia 10 e vai definir se um condomínio
residencial pode proibir a oferta de imóveis para aluguel por meio de
plataformas digitais, como o Airbnb.
O relator entendeu que não é possível a
limitação das atividades locatícias pelo condomínio residencial, porque as
locações via Airbnb e plataformas similares não estariam inseridas no conceito
de hospedagem, mas, sim, de locação residencial por curta temporada. Além disso,
não poderiam ser enquadradas como atividade comercial passível de proibição
pelo condomínio.
O ministro considerou que haveria violação
ao direito de propriedade caso fosse permitido que os condomínios proibissem a
locação temporária. Segundo ele, o condomínio pode adotar medidas adequadas
para manter regularmente o seu funcionamento – como o cadastramento de pessoas
na portaria –, mas não pode impedir a atividade de locação pelos proprietários.
Na sequência, o julgamento foi suspenso por
um pedido de vista do ministro Raul Araújo.
Animal em casa
Em maio de 2019, a Terceira Turma decidiu
que a convenção de condomínio residencial não pode proibir de forma genérica a
criação e a guarda de animais de qualquer espécie nas unidades autônomas quando
o animal não apresentar risco à segurança, à higiene, à saúde e ao sossego dos
demais moradores e dos frequentadores ocasionais do local.
O REsp 1.783.076 teve origem em ação
ajuizada por uma moradora de condomínio do Distrito Federal para ter o direito
de criar sua gata de estimação no apartamento. Ela alegou que o animal, considerado
um membro da família, não causava transtorno nas dependências do edifício.
Em seu voto, o relator, ministro Villas Bôas
Cueva, apontou a previsão do artigo 19 da Lei 4.591/1964 – de que o condômino
tem o direito de "usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma,
segundo suas conveniências e interesses, condicionados às normas de boa
vizinhança, e poderá usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar
dano ou incômodo aos demais moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das
mesmas partes por todos".
Segundo o ministro, podem surgir três
situações relacionadas à presença de animais em condomínios. A primeira é
quando a convenção não regula o tema, e nesse caso o condômino pode criar
animais em sua unidade autônoma, desde que não viole os deveres previstos nos
artigos 1.336, IV, do Código Civil e 19 da Lei 4.591/1964.
A segunda hipótese é a da convenção que
proíbe a permanência de animais causadores de incômodo aos moradores, a qual
não apresenta nenhuma ilegalidade. Por último, há a situação da convenção que
veda a permanência de animais de qualquer espécie – o que, para o ministro, é
desarrazoado, uma vez que "determinados animais não apresentam risco à
incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores
ocasionais do condomínio".
"O impedimento de criar animais em
partes exclusivas se justifica na preservação da segurança, da higiene, da
saúde e do sossego. Por isso, a restrição genérica contida em convenção
condominial, sem fundamento legítimo, deve ser afastada para assegurar o
direito do condômino, desde que sejam protegidos os interesses anteriormente
explicitados", concluiu.
Condômino inadimplente
Recentemente, a Quarta Turma também se
posicionou no sentido de que as regras condominiais não podem ultrapassar os
limites da lei. No julgamento do REsp 1.699.022, o colegiado definiu que o
condomínio não pode impor sanções que não estejam previstas em lei – como a
proibição de usar piscinas e outras áreas comuns – para forçar o pagamento da
dívida de morador que esteja com as mensalidades em atraso.
Por unanimidade, os ministros consideraram
inválida a regra do regulamento interno de um condomínio que impedia o uso das
áreas comuns por uma moradora em razão do não pagamento das taxas condominiais.
A dívida acumulada era de R$ 290 mil em 2012, quando a condômina ajuizou ação
para poder utilizar as áreas comuns.
O relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão,
explicou que o caput e os incisos do artigo 1.336 do Código Civil, em rol
meramente exemplificativo, explicitaram os deveres condominiais, podendo a
convenção, o estatuto ou o regimento interno respectivo prever outras condutas
permitidas e proibidas, positivas ou negativas, com o intuito de promover a boa
convivência entre os moradores.
"Percebe-se que a natureza jurídica do
condomínio edilício tem como característica a mescla da propriedade individual
com a copropriedade sobre as partes comuns, perfazendo uma unidade orgânica e
indissolúvel", ressaltou. O relator destacou que o Código Civil afirmou, de
forma expressa, que é direito do condômino "usar das partes comuns, conforme
a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores"
(inciso II do artigo 1.335).
Segundo o ministro, o condomínio não pode
impor sanções que não estejam previstas em lei para constranger o devedor ao
pagamento do débito. Para Salomão, não há dúvida de que a inadimplência gera
prejuízos ao condomínio, mas o próprio Código Civil estabeleceu meios legais "específicos
e rígidos" para a cobrança de dívidas, "sem qualquer forma de
constrangimento à dignidade do condômino e demais moradores".
Mudança na fachada
Contudo, o condomínio pode estabelecer
regras para possibilitar ou não mudanças na fachada e em áreas comuns do
edifício. Com esse entendimento, a Terceira Turma deu provimento ao REsp 1.483.733,
interposto por um condomínio, para determinar que um dos condôminos restaurasse
as esquadrias da fachada do seu apartamento conforme o padrão original do
prédio.
O recurso teve origem em uma ação de
desfazimento de alteração na fachada de um apartamento, ajuizada pelo
condomínio após o morador mudar a cor das esquadrias externas, de preto para
branco.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ)
negou o pedido, entendendo que a modificação não infringiu os preceitos legais,
uma vez que seria pouco visível a partir da rua, além de não ter acarretado
prejuízo direto no valor dos demais imóveis do prédio.
O ministro relator do recurso no STJ, Villas
Bôas Cueva, explicou que o legislador trouxe critérios objetivos bastante
claros a respeito de alterações na fachada de condomínios edilícios, os quais
devem ser observados por todos os condôminos indistintamente, ressalvando a
possibilidade de sua modificação, desde que autorizada pela unanimidade dos
condôminos (artigo 10, parágrafo 2º, da Lei 4.591/1964).
Para o relator, a solução do TJRJ fere a
literalidade da norma, pois tanto no Código Civil quanto na Lei 4591/1964 há
referência expressa à proibição de se alterar a cor das esquadrias externas.
Em seu voto, o relator ressaltou que admitir
que apenas as modificações visíveis do térreo possam caracterizar alteração da
fachada, passível de desfazimento, poderia levar ao entendimento de que, em
arranha-céus, os moradores dos andares superiores, quase invisíveis da rua, não
estariam sujeitos ao regramento em análise.
"Assim, isoladamente, a alteração em
tela pode não ter afetado diretamente o preço dos demais imóveis do edifício, mas
deve-se ponderar que, se cada proprietário de unidade superior promovesse sua
personalização, empregando cores de esquadrias que entendesse mais adequadas ao
seu gosto pessoal, a quebra da unidade arquitetônica seria drástica, com a
inevitável desvalorização do condomínio", disse.
Taxas de
manutenção
O STJ também já se pronunciou sobre as
obrigações criadas por associação de moradores. No julgamento de dois recursos
especiais sob o rito dos repetitivos (Tema 882), a Segunda Seção fixou a tese
de que "as taxas de manutenção criadas por associações de moradores não
obrigam os não associados ou os que a elas não anuíram".
Os recursos representativos da controvérsia
foram interpostos por proprietários que, embora não integrassem as associações
de moradores, sofreram cobrança das taxas de manutenção relativas às suas
unidades e aos serviços postos à disposição de todos. Eles foram condenados em
primeira instância a pagar as quantias reclamadas pelas respectivas associações.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em
ambos os casos, afirmou que a contribuição mensal era obrigatória, independentemente
de inscrição prévia do morador na associação, pois esta presta serviços comuns
que beneficiam todos. A falta de pagamento, segundo o TJSP, configuraria
enriquecimento ilícito do proprietário.
O autor do voto vencedor no STJ, ministro
Marco Buzzi, lembrou que, no julgamento do EREsp 444.931, em 2006, a Segunda
Seção já havia confrontado duas teses relacionadas ao tema: de um lado, a
liberdade associativa, que impede a cobrança de contribuição de não associado; e,
de outro, o enriquecimento sem causa, que torna legítima a cobrança pelos
serviços usufruídos ou postos à disposição do dono do imóvel, independentemente
de ser ou não associado.
O ministro ressaltou que a decisão do TJSP
considerou irrelevante a questão atrelada ao direito associativo. No entanto, lembrou
que, diversamente, julgados do STJ reconhecem a importância da anuência ou da
adesão do proprietário aos termos constitutivos da associação de moradores para
efeito de tais cobranças, preponderando, inclusive, a liberdade associativa
sobre o enriquecimento sem causa.
Liberdade de
associação
Nesse sentido, Buzzi lembrou que o Supremo
Tribunal Federal, no julgamento do RE 432.106, afirmou que "as obrigações
decorrentes da associação, ou da não associação, são direitos constitucionais"
e, em relação à cobrança de taxas condominiais por condomínio de fato, o STF
consignou que tal obrigação ou se submete à manifestação de vontade ou à
previsão em lei, sob pena de se esvaziar a disposição normativa e
principiológica contida no artigo 5°, XX, da Constituição Federal.
Segundo o ministro, as obrigações de ordem
civil, de natureza real ou contratual, pressupõem a existência de uma lei que
as exija ou de um acordo firmado com a manifestação expressa de vontade das
partes pactuantes. No ordenamento jurídico brasileiro, explicou, há somente
duas fontes de obrigações: a lei ou o contrato – as quais não existiam nos
casos em análise.
"Na ausência de uma legislação que
regule especificamente a presente matéria, prepondera, na hipótese, o exercício
da autonomia da vontade a ser manifestado pelo proprietário ou, inclusive, pelo
comprador de boa-fé, emanada da própria garantia constitucional da liberdade de
associação e da legalidade, uma vez que ninguém pode ser compelido a fazer algo
senão em virtude de lei", disse.
O ministro destacou que a associação de
moradores é "mera associação civil e, consequentemente, deve respeitar os
direitos e garantias individuais, aplicando-se, na espécie, a teoria da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais". Assim, ressaltou que as
taxas de manutenção criadas por associação de moradores não podem ser impostas
a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao ato que instituiu o
encargo, em observância ao princípio da liberdade de associação.
Refere-se ao (s) processo (s):
REsp 1819075
REsp 1783076
REsp 1699022
REsp 1483733
REsp 1280871
Por Vanderlei Garcia Junior
Fonte JusBrasil Notícias