Dentre
as várias transformações que o desenvolvimento tecnológico e das comunicações
vem operando na sociedade de consumo contemporânea[1] está o surgimento da
denominada economia do compartilhamento, também conhecida como consumo
colaborativo. Esta economia dita do compartilhamento (sharing economy) concebe
novos modelos de negócio não mais concentrados na aquisição da propriedade de
bens e na formação de patrimônio individual, mas no uso em comum — por várias
pessoas interessadas — das utilidades oferecidas por um mesmo bem.[2] A
estruturação destes negócios ganha força pela internet, e se dá tanto sob o
modelo peer to peer (P2P), quanto no modelo business to business (B2B), ou
seja, entre pessoas não profissionais e entre empresários.
A
escolha do tema para esta coluna resulta da importância crescente do consumo
colaborativo em vários países do mundo, e mais recentemente no Brasil. Há
várias formas de interpretar-se o fenômeno. Desde uma interpretação com ênfase
econômica, que dá conta de uma redução de custos e otimização de recursos em
razão do compartilhamento, até uma interpretação cultural, que identifica neste
novo modelo favorecido pela internet uma genuína inspiração de reação ao
consumismo e adesão ao consumo sustentável.[3] Por outro lado, também serve
para viabilizar o acesso a bens e utilidades de maior custo (a exemplo do car
sharing), mediante precisa definição das necessidades a serem satisfeitas
(transporte eventual) e o dispêndio apenas daquilo que for utilizado
(mensalidade, gasolina utilizada de um local a outro, sem pagar
estacionamento).
Muitos
setores da economia já estão sendo afetados por esta nova forma de oferecer e
consumir produtos e serviços no mercado, como é o caso do transporte de pessoas,
ou a locação de automóveis[4], e o compartilhamento de veículos, a hospedagem
turística, utilização de ferramentas,
dentre outros. Quem opta pelo compartilhamento, de um lado quer fruir da maior
utilidade possível dos bens de sua propriedade, e ser remunerado por isso, em
caráter eventual ou não. Por outro lado, quem procura utilizar os bens sem
adquiri-los, visualiza a oportunidade de investir apenas o necessário para
satisfazer sua necessidade momentânea, abrindo mão de imobilizar parte de seus
recursos em bens que utilizará apenas eventualmente.
A
tendência é de franca expansão, possibilitada pela criatividade e
desenvolvimento de novas plataformas de negócios na internet pelas denominadas
empresas start-ups, reconhecidas pela estruturação de modelos de negócio
inovadores em diversos setores. Note-se
que a prestação de serviços ou a oferta de bens podem ser realizadas por
intermédio de uma plataforma digital, por pessoas que não atuam necessariamente
como profissionais, nem se organizam sob a forma empresarial. É o caso daquele
que deseja alugar um dos cômodos da sua casa, por temporada, para um casal de
turistas, ou o que divide o uso do seu automóvel ou de certas ferramentas, com
outras pessoas interessadas, visando repartir os custos desta utilização ou,
mesmo, ser remunerado e obter certo lucro desta atividade.
Em
todos estes casos está presente o fenômeno da conexidade contratual[5], e se
deve perguntar, justamente, se podem ser caracterizadas como relações de
consumo aquelas estabelecidas entre quem deseja contratar a utilização e o
outro que oferece e compartilha o uso de um bem, mesmo não sendo um empresário
ou profissional que realize a atividade de modo organizado. Ou ainda, situações
já conhecidas de pessoas comuns que se utilizam, de modo espontâneo e eventual,
da internet para vender coisas usadas. A rigor, estas situações em que não está
presente uma organização profissional, ou o exercício habitual da atividade
para a obtenção de lucro, não se consideram relações de consumo.
Destaque-se,
contudo, que todas estas situações de consumo colaborativo pela internet
utilizam plataforma digital mantida por alguém que se dispõe a viabilizar
espaço ou instrumento de oferta por intermédio de um site ou aplicativo. O site
ou aplicativo atua não apenas como um facilitador, mas como aquele que torna
viável e, por vezes, estrutura um determinado modelo de negócio. Em outros
termos, o site ou aplicativo permite o acesso à “highway” e atua como guardião
deste acesso, um gatekeeper (“guardião do acesso”) que assume o dever, ao
oferecer o serviço de intermediação ou aproximação, de garantir a segurança do
modelo de negócio, despertando a confiança geral ao torná-lo disponível pela
internet. No direito brasileiro, estarão qualificados indistintamente como provedores
de aplicações de internet, de acordo com a definição que estabeleceu o artigo
5º, VII c/c artigo 15 da Lei 12.965/2014. Exige a norma, que se constituam na
forma de pessoa jurídica, exercendo a atividade de forma organizada,
profissionalmente e com fins econômicos.
É
a confiança no meio oferecido para as trocas e compartilhamentos, a base do
comportamento das partes, levando-as a aderir ao modelo de negócio e por
intermédio de determinada plataforma (site ou aplicativo), manifestar a vontade
de celebrar o negócio. Exige-se daí o domínio de certas informações sobre quem
se dispõe a oferecer o bem para uso compartilhado, ou as características do
produto ou serviço oferecido. Ou daquele que pretende obter a contraprestação
em dinheiro, a segurança sobre o modo como se viabiliza o pagamento. Nestes
casos, poderão participar, inclusive, outros agentes, como aqueles que
administrem os meios de pagamento para adimplemento do contrato (PayPal,
cartões de crédito etc.), ou ainda seguradores, no caso em que a plataforma se
disponha a garantir certos interesses das pessoas envolvidas no negócio. É o
caso noticiado pela imprensa britânica em 2014, sobre empresa atuante no
compartilhamento de casas e acomodações para interessados (Airbnb) e que, após
a má publicidade causada por inquilinos desonestos que causaram danos aos donos
dos imóveis locados, promoveu o aumento do valor da cobertura de seguro de
danos em favor dos locadores nestas situações, como modo de atrair novos
interessados.[6]
Nestes
casos, os deveres de lealdade são exigíveis de todos, mas a pergunta que surge
é qual a posição daquele que organiza e mantém o site ou o aplicativo de
internet, e que desempenha esta atividade com caráter econômico, remunerando-se
direta (por percentual dos valores contratados ou por taxas fixas) ou
indiretamente (por publicidade ou formação e negociação de banco de dados, por
exemplo).
O
dever deste guardião (gatekeeper, guardião do acesso) será o de garantir a
segurança do meio negocial oferecido, em uma espécie de responsabilidade em
rede (network liability), cuja exata extensão, contudo, será definida caso a
caso, conforme o nível de intervenção que tenha sobre o negócio. A economia do
compartilhamento é economia, business, custa algo, há presença de um consumidor.
Há situações em que poderá haver responsabilidade do intermediador pela
satisfação do dever principal de prestação do negócio objeto de intermediação
com o consumidor. Mas na maior parte das vezes, aquele que apenas aproxima e
intermedia o negócio deverá garantir a segurança e confiança no meio oferecido
para realizá-lo, não respondendo, necessariamente, pelas prestações ajustadas
entre partes.
O
critério para a exata distinção destas situações reside no próprio conteúdo do
serviço oferecido pelo site ou aplicativo de internet, ao qual, como regra, uma
vez viabilizando a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, atrai a
incidência do Código de Defesa do Consumidor e caracteriza aquele que o explora
como fornecedor de serviços (artigo 3º). Contudo, para caracterizar-se o vício
ou defeito do serviço, como é próprio ao sistema de responsabilidade do
fornecedor, deverá ser determinado de antemão, quais os fins (artigo 20) ou a
segurança (artigo 14) que legitimamente seriam esperados pelos consumidores[7]
em relação ao serviço oferecido por aquele que explora o site ou aplicativo que
promove a intermediação entre as partes.
Tratando-se
de serviços de intermediação, portanto, não bastará apenas a qualificação
daquele que a promove com fins econômicos como fornecedor. A exata medida da
responsabilidade daquele que explora o site ou aplicativo que viabiliza o
consumo colaborativo mediante compartilhamento de bens e serviços, deriva da
confiança despertada — e daí a necessidade da precisa definição de vício ou
defeito da prestação —, o que dependerá do exame caso a caso, do modelo de
negócio organizado a partir do site ou aplicativo.
O
desenvolvimento de sites e aplicativos que promovam alternativas de consumo
compartilhado de bens e serviços se associa, em geral, ao melhor interesse do
consumidor, uma vez permitem uma melhor utilização de produtos e serviços e, ao
mesmo tempo, podem fomentar a concorrência com setores organizados da economia,
melhorando suas práticas. Tratando-se de serviços oferecidos no mercado de
consumo, há incidência da legislação de proteção do consumidor. Uma pergunta
final que traduz as dificuldades de lidar com as inovações trazidas pela
internet, diz respeito à necessidade de regulação específica, ou não, destas
várias situações de compartilhamento. A questão tem maior destaque,
naturalmente, quando se trate de serviços cuja prestação se dê, na economia
tradicional, sob o regime regulado — caso da polêmica entre o aplicativo Uber e
os serviços de táxi.
A
nosso ver, contudo, o reconhecimento da aplicação do Código de Defesa do
Consumidor à oferta de aplicações de internet em geral (artigo 7º, XIII, da Lei
12.965/2014 – Marco Civil da Internet), é, por si, uma garantia aos
consumidores de produtos e serviços, inclusive nos modelos de consumo
colaborativo em que aquele que promove a intermediação atua profissionalmente.
Nestes termos, deve-se ter em conta que o excesso de regulamentação específica
e difusa pode inibir a formação de um ambiente seguro para inovação. Deve, o
Código de Defesa do Consumidor, incidir, então, em diálogo com o Marco Civil da
Internet e outras fontes, para assegurar a adequada proteção da confiança
despertada pelas novas tecnologias, como é o caso das situações de consumo
colaborativo desenvolvidas por intermédio da internet. Inovar os papéis de
consumidor e de fornecedor em rede, o uso compartilhado de produtos e serviços,
sem perder os direitos básicos já assentados, representa a evolução da
sociedade brasileira para um direito adaptado à nova economia digital. Este é o
desafio no qual o Código de Defesa do Consumidor pode prestar grande
contribuição.
[1] Veja-se: MARQUES,
Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São
Paulo: RT, 2004. 32 e ss.
[2] MELLER-HANNICH, Caroline. Verbraucherschutz und
Sharing Economy – Conferência da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito
do Consumidor, UFRGS, 2015.
[3] LATOUCHE, Serge. Sortir de la société de
consommation, LLL: Paris, 2010, p. 105 e ss.
[4] Dado interessante divulgado pela versão
eletrônica do The Wall Street Journal de 17 de dezembro último indica a
tendência de aumento do uso compartilhado de de automóveis nos Estados Unidos
considerando especialmente que o tempo de utilização dos automóveis é de 5%,
contra 95% do tempo em que eles ficam parados e sem uso. Veja-se:
http://br.wsj.com/articles/SB11872728649731044760404581420422311949328
[5] Veja-se: MOSSET ITURRASPE, Jorge. Contratos
conexos: grupos y redes de contratos. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1999.
[6] Conforme informação da reportagem publicada na
edição do jornal londrino The Observer, na edição de 12 de outubro de 2014,
“Tech monthly: sharing economy: world of sharing”, p. 14.
[7] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do consumidor.
5ª ed. São Paulo: RT, 2014, 532-533.
Por
Bruno Miragem e Claudia Lima Marques
Fonte
Consultor Jurídico