quarta-feira, 20 de maio de 2020

AS DIFICULDADES DO ENSINO JURÍDICO


O ensino no Brasil vai muito mal, como é publicamente reconhecido. Na esfera do Direito, vários aspectos demonstram isto, a começar do índice elevado de reprovação no exame da OAB. Como enfrentar a questão?
Falar sobre ensino é antes de tudo falar sobre educação, ou seja, um processo de aprendizagem, cujo escopo é condução para mudança da postura intelectual de uma dada pessoa.
Aprendizagem busca como resultado o ato de aprender – a afirmação parece pueril truísmo, porém guarda sentido bastante complexo, o qual depende da própria forma como se compreende o significado da expressão aprendizado.
Se por aprender se toma a perspectiva de transmitir conhecimento, como conteúdo de saberes dados previamente, então aprendizagem é simplesmente a transmissão desse conhecimento e o resultado final é obtido quando se consegue que tal conteúdo seja reproduzido de modo adequado, ou seja, computando-se quantitativamente, dentro de uma esfera percentual possível, os dados que podem ser assimilados e reproduzidos. Aprendizagem aqui privilegia mecanismos de memorização técnico-dogmáticos, procedimentos de armazenamento de enunciados, devendo estes ser arquivados em categorias, as quais, por sua vez, podem resumir-se em duas classes: conhecimentos a serem usados e conhecimentos a serem descartados.
A finalidade de tal aprendizagem acentua a dimensão, por assim dizer, utilitária do ensino, aquela em que o conhecimento se destina para alguma coisa, basicamente para prática de uma atividade profissional ou para a realização de um concurso, exame ou avaliação. Sob esta dinâmica, o bom aprendiz e, consequentemente o bom profissional, é aquele que consegue exercer seu trabalho mediante a aplicação de certo grau de conhecimento, indicando a utilização de um conjunto determinado de saberes ou também aquele que consegue, mediante a expressão de certos conteúdos, ser aprovado numa prova que represente a passagem para nova carreira. Aprender, nesse sentido, é reter enunciados para poder transmiti-los quando necessário, visando-se sempre a produção de resultado específico. A modificação da pessoa, desta forma, se dá pelo acréscimo de tais enunciados em seu universo cognitivo.
Em contrapartida, se por aprender se vislumbra um processo de contínua transformação do indivíduo, no qual este irá memorizar conteúdos resultantes de um mecanismo de reflexão, então aprendizagem não pode ser apenas a transmissão de um conjunto de enunciados ou conteúdo de saberes de uma determinada disciplina. Aprendizagem nesta modalidade é vista como a reiteração de ações, não aquelas objetivando diretamente a retenção de conteúdos, mas as que buscam armazenar os resultados produzidos num contínuo curso de certo fazer, de certo realizar, de certo proceder, traduzido por atividade intelectual complexa que envolve pensamentos, emoções e ações, a qual se pode chamar de saber.
Deste ângulo, aprender é saber, não como retenção de um conjunto de conhecimentos, não como conhecer enunciados memorizados a serem reproduzidos visando uma dada finalidade, normalmente produtiva, mas como saber complexo, cujo sentido envolve aspectos cognitivos, comportamentais e práticos, os quais podem ser referidos nas expressões respectivas saber-pensar, saber-sentir, saber-fazer, tão utilizadas na literatura pedagógica, porém não efetivamente consideradas nas práticas didáticas.
A aprendizagem realiza-se nessa via pela elaboração de questionamentos que provoquem reflexão, ou seja, acentua-se o tom problemático, voltando-se para mecanismos dialógicos e dialéticos. Dialógico como a abertura possível para a dualidade do discurso (em grego, diá=dualidade; logos=discurso). Dialético, por sua vez, aponta para a oposicionalidade do discurso (diá=dualidade; léthes=verdade), ou seja, a necessidade de se buscar uma solução possível, uma verdade possível, diante da multiplicidade de discursos que se confrontam. Respectivamente, guardando as dificuldades das expressões, dialógico traduz convergência enquanto dialético, conflito, confrontamento.
Note bem que não se trata de relacionar dialógico com a noção de tolerância iluminista, nem dialética com a de relação de forças marxista – o que se tem é uma postura metodológica que visa a busca do conhecimento de forma complexa dentro do discurso, diante das realidades sociais também complexas da modernidade. Trata-se de ver a aprendizagem como um processo de constante formação, que dura enquanto durar a existência do indivíduo, não se encerrando num determinado conjunto de saberes, pois procura não simplesmente a realização de uma atividade produtiva, mas a constante satisfação de problemas que são postos por situações e que exigem decisões.
Ensino, assim, é um processo reiterado, que o próprio individuo se capacita a realizar, por meio da reflexão, com o fim único de efetivar decisões. Decisões são respostas que se dá a situações com as quais se defronta. Lembrando-se que resposta tem como base a palavra latina spond, que é a mesma de responsabilidade, educar é evocar a responsabilidade, ou seja, transmitir modelo de capacitação que permita ao indivíduo refletir sobre aquilo com que se confronta e decidir de forma adequada, solucionando aquela situação, agindo, portanto, enquanto produz sua própria “autoconstrução”. Ensinar é chamar à responsabilidade, não como mero dever, mas como conscientização de pertencer ao mundo que se opõe ao mesmo indivíduo, que produz situações, as quais exigem respostas. Ensinar é modificar o sujeito possibilitando o olhar para a vida e o questionamento sobre ela, a fim de sempre responder aos chamados desta, agindo enquanto responde, por tecer os fios da trama de sua própria vivência.
Passando-se ao tema específico, trata-se do ensino jurídico, vale dizer de como ensinar o Direito e as complicações inerentes a isso. Porém, que é Direito?
Se a postura educacional for a primeira tratada, ele será visto como uma ciência, como um conteúdo de saberes de ordem normativa e conhecê-lo é armazenar a formulação legislativa dos diversos ramos. Ensinar Direito resume-se a informar os diversos textos legais referentes a cada disciplina distinta, unificando-os de forma simples num modelo político organizado por camadas hierárquicas de fontes legais, de acordo com sua produção e força de comando, resultando disto uma estrutura lógica de normas de conduta, as quais, por sua vez, são lidas num procedimento técnico-formalista, denominado interpretação/aplicação, cujo resultado é a extração de um significado supostamente já presente, privilegiando-se como último recurso o chamado argumento de autoridade, posto ser objetivo final do trabalho a normatização de condutas.
Diante disto, caberia a crítica contra a expressão operador do Direito, neste escopo visto como alguém que opera os mecanismos do sistema tecnicamente, isto é, como o profissional que “aperta as teclas e botões” das codificações legislativas, um operário dos códigos legais. Logo, não há nenhum compromisso com a realidade efetiva dos fatos, mas tão somente com o ordenamento normativo em si mesmo, transformando o conflito jurisdicional num debate de argumentos retóricos.
Este é o quadro de dificuldades hoje experimentado pelo ensino jurídico, viciado num modelo dogmático, resultando em profissionais que não conseguem compreender a totalidade das questões jurídicas e jurisdicionais e que, por este motivo, retroalimentam o sistema em suas deficiências. Em virtude de tal arranjo, segue nos meios da práxis forense, alçado ao nível de brocardo, o dito “na prática, a teoria é outra”. Com efeito, nada do que é ensinado serve em si mesmo, a não ser como mal traçado roteiro de cumprimento de requisitos procedimentais para aquisição de qualificação burocrática, a fim de praticar a profissão de advogado ou estar autorizado a prestar concursos.
Como solução inicial, fica a proposta de se encarar o Direito sob outro prisma, de acordo com o saudoso Prof. Goffredo Telles Jr, a “disciplina da convivência”, vale dizer, o saber-pensar, saber-sentir e saber-fazer que possibilitem a vivência em comum, a vida em comunidade. Enunciar tal perspectiva é simples, porém colocá-la em prática não é fácil. Revolver o modo de ver as coisas, modificar a cosmovisão a respeito do ensino jurídico é o primeiro passo, conforme se colocou acima sobre o tema do aprendizado complexo, contudo, como criar as estruturas para que isto ocorra é assunto que exigiria outro texto.

Por João Ibaixe Jr.
Fonte Última Instância