quinta-feira, 20 de julho de 2023

DIREITO À SAÚDE


Joseph K., o personagem kafkiano de O Processo, é um homem chamado à Justiça sem nada ter feito. Comparece, anda pelo ambiente burocrático e ininteligível, e de lá sai com pouco ou nada compreender.
Poderia ser esta a breve história do direito à saúde: é chamado – com destaque – a integrar a nova ordem constitucional; mais de 20 anos depois, parece-lhe ter perdido tempo ao atender ao chamado.
A omissão do Estado no que toca à efetivação do direito à saúde cobrou seu preço: são milhares de processos judiciais que discutem o tema, o que resta por onerar ainda mais o Poder Público – seja o Executivo com ônus de sucumbência ou recursos para a sua defesa judicial; seja o Judiciário, por conta do aumento desnecessário da carga de processos.
O movimento de judicialização das políticas públicas tem seu aspecto positivo, pois demonstra um certo despertar dos cidadãos para os seus direitos, abandonando a histórica tradição da passividade política dos brasileiros.
Mas há o contraponto.
A concretização de primados básicos de nossa ordem constitucional, como a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial – figuras, aliás, que se confundem – perpassa a concretização do direito à saúde. A judicialização das políticas públicas, embora necessária, contudo, não pode prescindir do respeito às leis do país e, sobretudo, das regras constitucionais, sob pena de tomarmos o caminho sem volta da praxe inconstitucional institucionalizada.
A virtude está no meio, já o disse o mais sábio dos filósofos; a regra se aplica à análise judicial do complexo tema da efetivação do direito à saúde por meio de ações judiciais. É necessário manter uma postura consciente e responsável, tarefa tão cara aos Magistrados do país na atualidade, em função do excesso de processos sob sua jurisdição.
A banalização do acesso à Justiça – vide as chamadas “demandas artificiais” - alcança, em certa medida, as ações tendentes à efetivação do direito à saúde. Olvida-se, neste cenário, que o Poder Público tem recursos limitados, devendo reservar-se somente à efetivação daquilo que os recursos públicos alcançam (reserva do possível); que há uma estruturação administrativa baseada na divisão de competências, de modo que a tese da ilegitimidade passiva deve ser analisada seriamente, e não afastada por meio de uma solidariedade que esconde um ativismo judicial mal-pensado; que por vezes a parte pode alcançar a pretensão administrativamente, sem necessidade ou interesse real de provocar a máquina judiciária.
A crescente judicialização do direito à saúde – e das políticas públicas de um modo geral – mascara a desestrutura do Poder Executivo. A longo prazo, a prática desestruturará o Estado Democrático de Direito, pois a História demonstra que a harmonia dos poderes fica seriamente comprometida quando um deles, por absoluta inércia do outro, toma-lhe o lugar.
Juiz não é administrador do orçamento público, e vice-versa – ou, ao menos, não o deveria ser... É de todo louvável a tarefa hercúlea enfrentada pelo Poder Judiciário; todavia, a administração constante e progressiva das verbas públicas por meio da expedição de ordens judiciais e, até mesmo, por meio de bloqueio de valores junto ao erário público, é-lhe munus estranho, função atípica.
Assim como existe muito mais entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, a inefetividade do direito à saúde (e de outro tantos direitos fundamentais) esconde e demonstra muito mais do que enxergamos à primeira vista. O fato de a democracia brasileira ser juvenil não autoriza nem justifica o descampar das regras jurídicas, sejam constitucionais ou infraconstitucionais. A inefetividade da máquina estatal não deveria ser combatida com ativismo judicial – muito menos a longo prazo -, mas com lenta e progressiva maturação da sociedade civil e, por extensão, do Poder Público.
Até lá, recorramos ao direito de ação; suturemos os escaninhos do Judiciário; brinquemos de país civilizado.
Pau que nasce torto nunca se endireita!
Por Michel Müller
Fonte Espaço Vital