Como o processo
eletrônico, a Covid-19 e a recente alteração da Lei 9.099 afetaram os rumos do
serviço de correspondência jurídica no Brasil
Num passado recente, as cooperativas de táxi
liquidaram os taxistas convencionais. Em seguida, vieram os aplicativos de
transporte (Uber, 99, BlaBlaCar, Easy, Cabify etc.) e estes trucidaram as
cooperativas de táxi. A trajetória da advocacia de correspondência – segmento
que atualmente abrange cerca de 400 mil profissionais em todo país – guarda
semelhanças com esse enredo.
Advogado correspondente é aquele que presta
serviços para outros advogados ou escritórios, sempre que estes necessitam realizar
diligências ou serviços jurídicos em comarcas distantes. É o caso, por exemplo,
do escritório que, sediado em São Paulo, necessita gerenciar processo judicial
existente em Itumbiara, interior de Goiás. Assim, contrata advogado residente
no município goiano para fazer frente a atos processuais que a distância o
impeça de realizar.
Bom negócio durante muito tempo – quando
advogar em apoio a bancos, empresas de telefonia e companhias aéreas era um dos
melhores negócios do mercado –, a advocacia de correspondência perdeu espaço. E,
com os últimos acontecimentos, pode estar com os dias contados.
1. Processo
eletrônico: o primeiro baque da advocacia de correspondência
Até o ano de 2005, sob o império do processo
físico (de papel), a advocacia de correspondência viveu seu melhor momento. Em
colaboração com o escritório matriz, o advogado correspondente desenvolvia
teses jurídicas, estratégias de atuação e as levava adiante durante todo o
curso do processo. Participava, como co-protagonista, de audiências, sustentações
orais e uma série de outros atos processuais.
A partir daquele ano, com a chegada do
processo eletrônico, a chave virou. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul
foi o primeiro tribunal estadual a adotá-lo, na 10ª Vara do Juizado Especial de
Campo Grande. Paralelamente, o Tribunal do Trabalho da Paraíba foi o primeiro a
ter um fórum em que as varas do trabalho eram totalmente eletrônicas. Eram
assim lançadas as pedras fundamentais do processo eletrônico no Brasil.
Em 2019, o Conselho Nacional de Justiça, juntamente
com os cinco Tribunais Regionais Federais do país, inauguraram o PJe – programa
de tramitação processual eletrônico, ao qual, um ano após, aderiram toda a
justiça do trabalho, dezesseis tribunais estaduais e a justiça militar de Minas
Gerais. Foi um caminho sem volta. O processo de virtualização continuou
avançando a toque de caixa, sendo, atualmente, a regra. E não é difícil
imaginar que, brevemente, 100% (cem por cento) dos processos judiciais
existentes no Brasil tramitarão exclusivamente em meio eletrônico, desde sua
distribuição até o ato de encerramento.
A advocacia de correspondência, nesse
contexto, perdeu seu posto de relativo protagonismo, deixando o advogado de
apoio de ser aquele que discute e desenvolve teses com o advogado/escritório
matriz para representar, tão somente, um executor de tarefas menos relevantes, alguém
a quem se recorre em último caso, de maneira residual e subsidiária, nos poucos
atos processuais e diligências que não puderem ser realizados através do
processo eletrônico.
Com isso, os serviços de correspondência
jurídica se tornaram palco para o aviltamento de honorários e para a
desvalorização da advocacia brasileira. Atendendo a tabelas vergonhosas pré-fixadas
pelas empresas contratantes, não são poucos os relatos de advogados que, por R$
20,00 (vinte reais) ou pouco mais, aceitaram realizar audiências judiciais, só
vindo a receber tal valor um ou dois meses após a prestação do serviço.
A situação acaba frustrando e asfixiando
advogados, que, descapitalizados, se veem impossibilitados de continuar
suportando gastos com combustível, cópias, despesas do escritório etc.
2. Covid-19: o
segundo baque da advocacia de correspondência
Se já não estava fácil, com o advento do
Novo Coronavírus, seguramente o mercado advocatício ficou bem mais penoso, sobretudo
para os prestadores de serviços de correspondência jurídica, na medida em que
seus ganhos dependem diretamente da realização de diligências presenciais, e
estas foram quase que totalmente extintas com as medidas de confinamento
impostas pelos Estados.
A advocacia de correspondência foi pega em
cheio com a pandemia do Covid-19, sendo surpreendida, de uma hora pra outra, com
a suspensão do funcionamento presencial de todos os tribunais, fóruns e
juizados do país, que rapidamente viabilizaram soluções tecnológicas, encurtando
distâncias.
No Poder Judiciário, foram realizadas
adaptações quase que imediatas para a utilização de aplicativos e plataformas
até então impensáveis em um futuro tão próximo. WhatsApp, Google, Hangouts e
Zoom foram regulamentados por diversos tribunais, viabilizando a realização de
audiências, sessões de julgamento, transações penais, casamentos virtuais etc. Diante
do novo cenário, o correspondente jurídico ficou escanteado.
E não adianta se iludir. Após o fim da
pandemia, a justiça, que deu um salto em tecnologia com a utilização em larga
escala de todas as potencialidades do processo eletrônico, não voltará ao modo
analógico. A mudança é irreversível. Restará ao advogado correspondente se
reinventar e procurar novos nichos de mercado, antecipando-se aos efeitos
devastadores da crise e criando oportunidades.
3. A mudança na Lei
dos Juizados: o terceiro baque da advocacia de correspondência
Encaminhada pelo falecido deputado e jurista
Luiz Flávio Gomes, ainda em março de 2019, a proposta que ocasionou a alteração
na Lei dos Juizados ganhou força em tempos de Covid-19 e foi publicada no
Diário Oficial da União em 27 de abril deste ano, com o seguinte teor:
Lei nº 13.994/2020
Altera a Lei nº 9.099,
de 26 de setembro de 1995, para possibilitar a conciliação não presencial no
âmbito dos Juizados Especiais Cíveis.
O PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso
Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Esta Lei
altera a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, para possibilitar a
conciliação não presencial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis.
Art. 2º Os arts. 22 e
23 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, passam a vigorar com as
seguintes alterações:
“Art. 22. …………………………………………………………………………………
· 1º Obtida a
conciliação, esta será reduzida a escrito e homologada pelo Juiz togado
mediante sentença com eficácia de título executivo.
· 2º É cabível a
conciliação não presencial conduzida pelo Juizado mediante o emprego dos
recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo
real, devendo o resultado da tentativa de conciliação ser reduzido a escrito
com os anexos pertinentes.” (NR)
“Art. 23. Se o
demandado não comparecer ou recusar-se a participar da tentativa de conciliação
não presencial, o Juiz togado proferirá sentença.” (NR)
Art. 3º Esta Lei
entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 24 de abril
de 2020; 199o da Independência e 132o da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Luiz Pontel de Souza
Este texto não substitui o publicado no DOU de 27.4.2020
Ao que se evidencia, a obrigatoriedade da
presença das partes fisicamente em juízo – até então diretriz inafastável dos
Juizados Especiais, traduzida no princípio da pessoalidade – foi colocada de
cabeça pra baixo diante da necessidade de dar continuidade aos serviços dessas
importantes unidades judiciárias. A simplicidade, a informalidade e a economia
processual falaram mais alto.
Com a alteração realizada na Lei 9.099, as
audiências de conciliação passaram a poder ser realizadas em ambiente virtual, através
de plataformas digitais, ficando também estabelecido que o silêncio deduzido da
recusa ou não participação das partes na audiência designada em meio eletrônico
autorizará o juiz a proferir a sentença.
Se, para pessoas que não dispunham de
capacidade de locomoção, a mudança legislativa gerou inclusão e benefício, para
advogados de correspondência, que, em sua grande maioria, estão concentrados
nos popularmente conhecidos Juizados de Pequenas Causas, a novidade foi trágica.
É importante atentar para o fato de que os
juizados sempre funcionaram como uma espécie de laboratório experimental do
Poder Judiciário para implementação de inovações que possam trazer melhorias
aos jurisdicionados. Assim, não é difícil imaginar que, após lançado esse
primeiro sinal de fumaça, brevemente as audiências de instrução e julgamento
nos juizados, bem como todas as audiências da justiça comum, deverão ser
realizadas dessa forma.
4. Conclusão
Os avanços conquistados nas primeiras
semanas de pandemia provaram que a tecnologia é capaz de conferir maior
celeridade, simplicidade, produtividade, transparência, acessibilidade, organização,
economia e efetividade ao trabalho desempenhado pelos atores do mundo jurídico.
Com o tsunami de mudanças havidas em
decorrência do vigoroso implemento da tecnologia no Poder Judiciário, a
advocacia de correspondência tende a entrar em processo de atrofia, sendo cada
vez menos demandada para a realização de audiências, despachos, sustentações
orais, diligências etc.
O movimento de desmaterialização iniciado no
fim do século passado, em determinado momento, foi impulsionado pela
substituição dos orelhões por aparelhos de telefone celular, das máquinas de
datilografia pelos computadores, das listas telefônicas por portais de busca na
internet. O fluxo continua e a advocacia deve ser repensada agora e nos
próximos meses e anos.
Proatividade, adaptabilidade e resiliência
são qualidades do advogado que deseja estar inserido no futuro que já chegou. É
hora de mudar!
Por Lucas Almeida
Fonte JusBrasil Notícias