Para usar a
tecnologia, advogados devem entender de relações contratuais e saber se
comunicar com engenheiros
Apesar de já estar no mercado há 10 anos, o
blockchain só começou a ser recentemente explorado no Direito, e promete servir
de aliado para o advogado ao evitar perda de tempo com burocracias. A
tecnologia pode ser usada, por exemplo, para registrar o momento da celebração
de um contrato e torná-lo imutável ou para fazer a autenticação de documentos.
A tecnologia permite registros de
atividades que são armazenados em vários computadores e visa a descentralização
como medida de segurança. É possível comparar o blockchain com um livro digital
que fornece uma maneira de fazer e gravar transações, acordos e contratos.
Quando uma transação ocorre, seus detalhes
são criptografados e é gerado um número de transação. Todos os usuários da rede
podem ver que a transação ocorreu, mas apenas as partes envolvidas no negócio
podem acessar e ver seus detalhes.
Segundo o pesquisador da FGV Guilherme Kenzo,
isso facilita a identificação de alguma atividade fraudulenta. “Para que seja
possível que um hacker malicioso ataque um sistema que opere com blockchain
como um todo, seria necessário que ele tivesse controle de mais de 50% da rede”,
afirma.
“Não há redundância de dados, o sistema pode
confirmar que as transações são válidas ou não, sem a participação de uma
autoridade central. Diversas máquinas com softwares do blockchain fazem essa
confirmação”, complementa.
No Direito, ainda não é possível visualizar
um limite para a atuação dessa tecnologia. Já usado por advogados do Brasil, os
“Smart Contracts” (Contratos Inteligentes) fazem o processamento de dados e o
contrato pode se auto-executar de acordo com a vontade das partes do negócio.
Por exemplo, em um caso de compra de
commodities futuras. Uma pessoa quer vender a soja que está produzindo agora, mas
o valor depende do preço futuro da commodity. O programa de computador analisa
o índice de soja e muda o preço no contrato e pode até se auto-executar.
Segundo especialistas, o blockchain é apenas
a infraestrutura que pode afetar contratos ou pode gerar obrigações como se
fosse um contrato. Nesse sentido, isso em nada difere de qualquer contrato que
um advogado conhece. Os mesmos princípios do Código Civil devem ser observados:
as partes precisam ser capazes, o objeto do contrato deve ser lícito e não pode
ser contrário a regulamentação ou lei. Respeitados esses princípios pode ir em
frente.
Para atuar com assuntos relacionados com
blockchain o advogado precisa entender de relações contratuais, Código Civil, Código
de Defesa do Consumidor e eventualmente regras específicas de Banco Central (Bacen),
Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e outros órgão reguladores, além de se
comunicar com os desenvolvedores e engenheiros para que consigam entender como
a tecnologia funciona para traduzir isso no mundo jurídico.
Direito
Em um escritório de advocacia, por exemplo, a
tecnologia pode ser usada para criar uma infraestrutura de pagamento que
permitiria a transferência de fundos em tempo real e a um custo menor do que já
existe hoje. Ainda, é possível realizar o registro em blockchain de contratos
de empréstimos.
De acordo com o advogado Bruno Balducci, do
Pinheiro Neto Advogados, esse registro serve para marcar o momento da
celebração do contrato bem como para torná-lo imutável unilateralmente, o que é
importante em uma relação de consumo.
Há ainda um modelo desenvolvido pela
Federação Brasileira de Bancos (Febraban) onde o cadastro de uma pessoa é feito
de forma centralizada e registrado no blockchain. Após a autorização do cliente,
o registro é disponibilizado no banco que ele deseja manter uma relação
comercial, como uma conta corrente por exemplo. “Quaisquer atualizações feitas
no cadastro dessa pessoa são automaticamente atualizada nos bancos para quem
esse cliente liberou o acesso”, explica.
Além disso, o blockchain pode impactar o
modo de registrar provas de autoria de obras. Seria o caso, por exemplo, de
sistemas de registros de propriedade intelectual ou de um grande repositório de
informações da contratação de seguros.
Criptomoedas
Especialistas apontam que existe uma
coexistencia necessária entre o Bitcoin ou outro cripto ativo e seu respectivo
Blockchain. Isso porque o bitcoin ou cada cripto ativo emitido com os mesmos
fundamentos do Bitcoin pode ser visto como a recompensa por um trabalho ou a
garantia de que tal trabalho foi feito.
Sem tal recompensa, é possível que o
trabalho esperado nunca viesse a ser performado e, portanto, tal Blockchain
sequer existisse. Em uma analogia simples, é como ter o carro com o melhor
motor do mundo, mas nenhum combustível para fazer ele funcionar.
Como tudo que é novo, a tecnologia ainda tem
que arcar com alguns problemas. As soluções só serão descobertas conforme as
questões forem aparecendo. Apesar da tecnologia ter sido concebida em 2008 ela
ainda é nova, em comparação com as tecnologias jurídicas já existentes.
A maior parte dos usuários de criptomoedas
estão interessados somente em segurar as moedas para, no momento em que elas
estiverem em um valor alto, vendê-las. Acontece que isso faz com que os
sistemas em blockchain, mesmo que tenham outras finalidades, fiquem caros para
uso cotidiano.
Além disso, Kenzo afirma que o uso de
energia elétrica da rede Bitcoin é enorme. Os mineradores de criptomoedas são
aqueles que confirmam as transações realizadas na rede. Parte da recompensa
deles vem do próprio sistema com moedas virtuais.
“O sistema é predeterminado para recompensar
uma quantia específica de moedas em intervalos específicos e, quão melhor os
seus processadores, maior a chance de ganhar essa recompensa. Portanto, existe
uma corrida para ver quem tem maior poder de processamento. Computadores
gigantes gastam muita energia fazendo a verificação de transações, o que gera
um grande gasto de energia elétrica”, afirmou.
“Esse problema é agravado pela corrida que
ocorre entre os grandes mineradores, já que os processadores consomem bastante
energia. Como cada minerador quer ter o maior poder de processamento, eles
acabam colocando mais processadores para minerar”, completou.
Autenticação de documentos
Outra ferramenta usada pelo software
blockchain faz a autenticação de documentos, e especialistas apostam na
colaboração com cartórios do país. A empresa brasileira “OriginalMy”, por
exemplo, é pioneira em utilizar a tecnologia blockchain para esta situação.
Na plataforma é possível registrar
informações em blockchain e verificar a autenticidade de documentos digitais, contratos
e identidades de pessoas, além da possibilidade de assinar documentos através
do aplicativo e fazer login em sites sem a necessidade de preencher senhas ou
formulários.
O programa usa o blockchain para criar um
carimbo de tempo que possa comprovar de maneira inquestionável que o documento
existia em determinado momento e com isso é possível conseguir fazer prova de
autoria.
Segundo Alexandre Garcia, da Mosaico
Universidade, o programa não exclui a necessidade de cartórios, já que a
tecnologia faz apenas uma “pequena função”, equivalente a bater o carimbo. “O
cartório pode delegar a função de carimbar documentos ao blockchain e mantém o
registro do documento. O ato normativo prevê a evolução digital dos cartórios, mas
essa integração ainda não ocorreu”, afirmou.
Regulamentação
Até agora não há previsão de regulamentação
dessa tecnologia. Para os especialistas ouvidos pelo JOTA, a falta de regras
ainda não é alarmante, já que a regulamentação pode inibir o seu
desenvolvimento e limitar a criatividade.
“Essa liberdade deveria vir acompanhada de
uma grande dose de responsabilidade, o que nem sempre é o caso, surgindo assim
situações de irregularidade em face da legislação e normas já postas, a ensejar
uma atuação estatal repressiva”, afirmou Alexandre Garcia.
“Infelizmente, muitas vezes são esses focos
isolados de irregularidades que ganham as manchetes e isso pode acabar levando
a uma compreensão equivocada de que a tecnologia é utilizada apenas ou
primordialmente para perpetrar fraudes, deixando-se de perceber todo o
potencial transformador positivo do blockchain e suas aplicações”, completou.
Lá fora
Em outros países já é possível perceber um
aumento da regulação em geral, maior fiscalização por parte dos reguladores e a
exigência de maior rigor das atividades baseadas em cripto ativos pelos
reguladores.
O estado do Wyoming, nos Estados Unidos, decidiu
posicionar-se como o estado americano mais cripto-friendly da nação, aprovando
regras específicas e claras para ICOs até US$75MM, e, ainda, apresentando
propostas de leis federais americanas isentando as transações com cripto moedas
de tributação.
Por Livia Scocuglia
Fonte JOTA