quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL E PENAL POR ATOS PRATICADOS NA INTERNET

 

A conduta ilícita praticada na internet tem o mesmo enquadramento jurídico da conduta ilícita praticada no ambiente social físico.
A internet tornou-se um dos principais meios de comunicação, com impacto direto nas relações por ela estabelecidas. No Brasil, apesar de a oferta em escala do acesso à rede ter-se iniciado apenas em 1995, existem mais de 80 milhões de usuários, com taxa de crescimento de 5% ao ano, conforme os dados obtidos em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.[1]
Ao se confrontar tais números com o resultado do censo feito em 2010, que indicou uma população de 190 milhões de brasileiros e uma taxa de crescimento anual de 1,23%[2], chega-se à conclusão de que, nos próximos anos, a maioria da população nacional será usuária de internet. É de salientar que tal popularidade transcende os limites de nosso território e se repete em dimensão global.
No âmbito virtual, o internauta passivo, que somente buscava informações na rede mundial, deu lugar ao internauta essencialmente ativo, hoje estimulado sobretudo pela criação de diversos espaços públicos de interação como o twitter, o facebook, o linkedin e os blogs. Nesses ambientes, os usuários emitem suas opiniões sobre questões políticas, profissionais, cotidianas e afetivas.
Essa participação político-social, que permite a qualquer pessoa concretizar a liberdade de expressão e de informação, faz da internet a principal ferramenta para o exercício da cidadania, cujo conceito clássico está ligado ao efetivo engajamento do indivíduo nas tomadas de decisões. Justifica, para teóricos das ciências sociais, o reconhecimento do acesso à rede como direito fundamental.20
Não se questiona a essencialidade da internet como espaço público concretizador de ideais constitucionais de participação e de emancipação do cidadão. Para tanto, o direito à privacidade e à liberdade de expressão são pressupostos para o pleno exercício do direito de acesso à internet.
O espaço público virtual oferece a possibilidade de o cidadão se manifestar, sem qualquer censura prévia, sobre o assunto que melhor lhe convier. Pode fazê-lo em um ambiente físico completamente seguro, em geral seu próprio domicílio, o que dá a esse cidadão a aparência de que o ciberespaço confere invisibilidade.
Essa liberdade, aliada a um possível anonimato, passa ao usuário a falsa impressão de que a internet é um território sem lei, um ambiente social paralelo guiado pela total ausência do Estado e de seu poder de polícia. A vida real e a internet seriam dimensões distintas e, portanto, as regras do mundo real não valeriam no virtual.
Essa visão é equivocada. A conduta ilícita praticada na internet tem o mesmo enquadramento jurídico da conduta ilícita praticada no ambiente social físico. Equivocada também é a aparente invisibilidade do internauta que pratica a conduta, pois existem modernos meios de investigação, com os quais a polícia conta para identificá-lo. Atualmente se mostra crescente o número de ações judiciais que buscam a condenação, no âmbito cível e penal, de indivíduos que utilizaram a internet para cometer ilicitudes.
Embora as condutas ilícitas mais comuns em ambiente virtual sejam de ameaça, de pedofilia e de violação aos direitos da personalidade - tipificadas criminalmente como calúnia, injúria ou difamação, que geram, civilmente, o direito à indenização por danos morais à vítima – outras previstas no Código Penal e na legislação extravagante comportam a prática em ambiente virtual, como a instigação ao suicídio, o estelionato e a fraude.
Insta salientar a preocupação do Estado na apuração e na efetiva condenação dos indiciados, demonstrada com a criação de diversas delegacias especializadas em crimes cibernéticos[3] e com as discussões sobre a possível existência de varas judiciais igualmente especializadas para a tramitação de processos decorrentes de atos ilícitos cometidos na internet. 
Esses atos suscitam questões permeadas de imbróglios jurídicos, alguns analisados a seguir.
No tocante à responsabilização dos provedores de internet, que disponibilizam os espaços virtuais e, de forma indireta, disseminam os eventos delitivos à sociedade, o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão[4], consolidou o entendimento  perfilhado pelo Direito Internacional de que não há responsabilidade objetiva dos provedores na publicação de atos ilícitos por parte dos usuários.[5]
Essa orientação fundamenta-se em que o contrato, implícito ou explícito, de prestação de serviços não contempla a averiguação prévia do conteúdo a ser disponibilizado, o que poderia, inclusive, configurar uma espécie de censura. O provedor somente poderá ser responsabilizado caso fique comprovada omissão culposa ao não retirar o conteúdo após ser notificado da ilicitude deste.
Nesse ponto, a jurisprudência ainda está bastante dividida acerca de um aspecto formal: bastaria uma simples notificação do fato ao provedor feita por qualquer pessoa ou tal notificação deve ser, necessariamente, judicial? Em homenagem à segurança das relações jurídicas e à própria liberdade de expressão, o que parece mais acertado e o que, inclusive, está contemplado no projeto de lei intitulado “Marco Civil da internet”[6] é a necessidade de a notificação ser judicial.
A recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, todavia, aponta para a necessidade de retirada imediata do conteúdo após qualquer comunicação, o que, a nosso sentir, configuraria uma espécie de censura a posteriori por pessoas destituídas de legitimidade para tal averiguação.[7]
Também tem sido objeto de controvérsias a competência para o processamento das ações decorrentes de ilícitos praticados na internet. A primeira delas diz respeito à definição da Justiça comum ou federal para o processamento das ações penais que impliquem crimes previstos em tratados ou convenções internacionais, diante da transnacionalidade ínsita aos domínios da internet. A Constituição da República estabelece a Justiça federal como competente para julgar e processar os feitos que, iniciados no Brasil, transcendem o território nacional.
Precedente do Superior Tribunal de Justiça assinala que a abrangência internacional de domínios ou de redes sociais é circunstância suficiente para a determinação da competência da Justiça federal.[8] Tal  orientação não aparenta ser a mais adequada, porquanto atrairia a competência da Justiça federal para todo e qualquer crime previsto em norma internacional, ainda que cometido entre vizinhos, em redes sociais populares como o facebook.
A segunda controvérsia refere-se à delimitação da competência em razão do lugar onde foi praticado o delito, dada a ubiquidade da internet. A solução jurisprudencial dominante fraciona a competência em face da natureza do ato praticado.
O ilícito penal terá como foro o juízo do local onde foi concluída a ação delituosa, ou seja, onde se encontrava o acusado, responsável pela publicação do ato ilícito no ambiente virtual.[9] Em relação ao ato ilícito civil, o Superior Tribunal de Justiça entende que, no ciberespaço, o conceito de “lugar do ato ou fato” previsto no diploma processual civil é a localidade em que residem e trabalham as pessoas prejudicadas, pois seria na comunidade onde elas vivem que o evento negativo tem maior repercussão.[0]
As controvérsias aqui relatadas têm natureza eminentemente formal, já que as interações sociais ocorridas na internet estarão sempre submetidas ao ordenamento jurídico, que salvaguardará os direitos fundamentais de livre expressão, de preservação da intimidade e, ao mesmo tempo, os demais bens jurídicos, de sorte a coibir, sempre que necessário, condutas que o contrariem.

Notas
[1][1]http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/
[2][2]http://www.censo2010.ibge.gov.br/resultados_do_censo2010.php
[3][3]http://www.safernet.org.br/site/prevencao/orientacao/delegacias
[4][4]RESP nº 1.186.616/MG, 3ª Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, publicado no Dje de 31/08/2011
[5][5]Um caso paradigmático e pioneiro que revela o princípio geral de que o provedor não pode ser responsabilizado objetivamente pelas mensagens que são disponibilizadas é o Cubby Inc vs. CompuServe, julgado pela Corte Distrital de Nova Iorque em 1991. Detalhes disponíveis em http://en.wikipedia.org/wiki/Cubby,_Inc._v._CompuServe_Inc.
[6][6]Artigo 15 do PL 2126/2011: “Salvo disposição legal em contrário, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.” Disponível em
[7][7]Extrai-se o seguinte texto da ementa do RESP nº 1.186.616/MG: “Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada.”     
[8][8]CC nº 112.616/PR, 3ª Seção, Relator Min. Gilson Dipp, publicado no Dje de 01/08/2011
[9][9]CC nº 106.625/DF, 3ª Seção, Relator Min. Arnaldo Esteves Lima, publicado no Dje de 25/05/2010
[10][10]AgRg no Ag nº 808.075/DF, Relator Min. Fernando Gonçalves, publicado no DJ de 17/12/2007

Por Luis Gustavo Freitas da Silva
Fonte Jus Navigandi