terça-feira, 26 de junho de 2018

CARTÃO DE CRÉDITO: CADEIA DE FORNECIMENTO MERECE ATENÇÃO DE JUIZ


O avanço da tecnologia e o aumento das facilidades de acesso, pelo consumidor, ao crédito e aos mercados de bens de consumo e de serviço, provocaram alterações na forma como os consumidores gastam seu dinheiro. Tal mudança é especialmente perceptível no que diz respeito aos meios de pagamento utilizados pelos consumidores.
Nos últimos anos, verificou-se um aumento sensível na utilização de cartões de pagamento pelos consumidores de diferentes classes sociais. Hoje, o cartão de crédito não está mais somente nos grandes centros urbanos ou nas mãos de consumidores de alta renda. É possível utilizar o cartão como meio de pagamento nos mais diversos lugares e mercados e para quantias também bastante variáveis.
Além da evolução da tecnologia, a maior segurança e facilidade trazidas oferecidas por esta modalidade de pagamento tornaram-na mais popular. Com o cartão, não é preciso carregar grandes quantias em dinheiro ou o talão de cheques. Ainda, é possível realizar transações por telefone ou pela internet. No entanto, a maior utilização dos cartões de pagamento pelos consumidores também aumenta os problemas deles decorrentes e, consequentemente, aumenta o número de ações judiciais questionando a sua utilização.
Ocorre que a indústria de cartões de pagamento é uma indústria complexa, composta de diversos agentes que nem sempre participam diretamente da cadeia de fornecimento do produto. A complexidade vem gerando um grande número de ações judiciais e administrativas propostas contra partes que não necessariamente podem resolver o problema do consumidor. Em grande parte, isto ocorre em razão de o consumidor, e por vezes até mesmo os julgadores, não terem o exato conhecimento de quem são os agentes atuantes na indústria e quais as suas responsabilidades.
O presente artigo tem por objetivo esclarecer quem são os agentes que atuam na indústria de cartões de pagamento no Brasil e quais deles travam relações com o consumidor ou participam diretamente da cadeia de fornecimento do produto. Ademais, é importante também delimitar quais são as funções e responsabilidades de cada um, a fim de demonstrar quem deve ser responsabilizado pelo que e quem não tem qualquer ingerência sobre a atividade questionada.

A indústria de cartões de pagamento
No Brasil, a indústria de cartões de pagamento está organizada de maneira complexa, sendo que os agentes que atuam neste setor podem ser assim elencados: (i) proprietários das plataformas (popularmente conhecido como “bandeiras”); (ii) emissores ou administradores (bancos); (iii) usuários do cartão ou portadores; (iv) credenciadores (ou adquirentes); e (v) estabelecimentos comerciais (vendedores)[1].
A bandeira é a empresa titular da plataforma de pagamento. Ela é a proprietária da marca e fornece a tecnologia (plataforma) para que as transações sejam operadas pelos emissores e credenciadores. O papel da bandeira é somente o de fornecer a plataforma para que o pagamento possa efetuado por meio de um cartão. Ou seja, esta empresa não possui nenhuma relação jurídica com o usuário do cartão ou com o estabelecimento comercial.
O fato de a marca da bandeira aparecer estampada no cartão frequentemente provoca confusão quanto à responsabilidade por eventuais problemas sofridos pelo consumidor. Por esta razão, é importante observar que o logotipo da bandeira é colocado nos cartões unicamente com a finalidade de indicar ao estabelecimento comercial credenciado que ele deve aceitar aquele cartão como forma de pagamento. Ou seja, a medida serve justamente para evitar constrangimentos ao portador do cartão.
Há também o banco emissor, que é o administrador do cartão de pagamento. O banco oferece ao consumidor o produto “cartão de pagamento” e estabelece com ele uma relação contratual. É ele o responsável pela habilitação, identificação e autorização, liberação de limite de crédito ou saldo em conta corrente, fixação de encargos financeiros, cobrança de fatura e definição de programas de benefícios.
O consumidor é o usuário do cartão de crédito ou portador, que é aquele que utiliza o serviço de pagamento por meio de cartão oferecido pelo emissor. Ele contrata o serviço de crédito com o banco emissor e recebe dele periodicamente uma fatura correspondente aos valores utilizados por meio do cartão de crédito. A marca da bandeira pode vir ou não estampada também na fatura, para facilitar a identificação pelo consumidor, o que não caracteriza qualquer relação jurídica entre eles.
O credenciador é o responsável pela afiliação dos estabelecimentos ao determinado sistema de pagamento. Ele estabelece uma relação autônoma com os diversos estabelecimentos comerciais credenciados, para que eles aceitem o cartão de pagamento de determinada bandeira oferecido pelos emissores. É dele a responsabilidade de repassar ao estabelecimento comercial os valores dos produtos/serviços adquiridos pelo usuário do cartão e é ele o responsável pela “maquininha” do cartão de pagamento.
Por fim, há os estabelecimentos comerciais credenciados, que aceitam o cartão como forma e pagamento por seus produtos/serviços. A afiliação a uma ou mais bandeiras é feita pela respectiva credenciadora. Ou seja, a bandeira e o banco emissor não chegam a estabelecer qualquer relação jurídica com os estabelecimentos comerciais.

A cadeia de fornecimento no CDC
A cadeia de fornecimento pode ser entendida como o fenômeno econômico de organização do modo de produção e distribuição, do modo de fornecimento de serviços complexos, envolvendo grande número de atores que unem esforços e atividades para uma finalidade comum, qual seja, a de poder oferecer no mercado produtos e serviços para os consumidores[2].
De acordo com o art 3º do Código de Defesa do Consumidor, o sistema de proteção do consumidor considera como fornecedores todos os que participam da cadeia de fornecimento de produtos e da cadeia de fornecimento de serviços. Há quem defenda que não importa se a relação é direta ou indireta, contratual ou extracontratual. Deste modo, entende-se pela solidariedade entre todos os participantes da cadeia.
Este posicionamento objetiva proteger o consumidor, que é por vezes prejudicado por não conseguir visualizar a presença dos vários fornecedores e por não ter consciência de que pode exigir informação e garantia mesmo daquele fabricante ou produtor com quem não mantém relação direta, mas que faz parte da cadeia de fornecimento. Tal entendimento é válido e de fato facilita a busca do consumidor por seus direitos, já que ele é considerado a parte hipossuficiente da relação.
O exemplo clássico de solidariedade entre os diversos participantes de uma cadeia de fornecimento é o da montadora de veículos (fabricante) e da concessionária (vendedora). Afirma-se que ambas são responsáveis por eventuais problemas do consumidor com o veículo, já que ambas participam e contribuem de alguma forma para que o produto chegue até o destinatário final (consumidor).
No entanto, é importante observar que tal situação difere completamente daquela que se verifica entre os agentes da indústria de cartões de pagamento. No caso dos cartões de crédito, não há cadeia de fornecimento. Como explicado acima, cada agente tem a sua função, sendo que não são todos que compartilham a finalidade de “oferecer produtos e serviços para os consumidores”.
A bandeira, como demonstrado, é a detentora da plataforma de pagamento. Ou seja, sua finalidade não é a de oferecer crédito ao consumidor final ou mesmo algum produto ou serviço, mas sim de fornecer aos bancos emissores um veículo (tecnologia) que permita a eles oferecer créditos a seus clientes, estes sim os consumidores, por meio de um cartão. Sabe-se que esta não é a única forma de adquirir crédito ou algum produto/serviço. Ou seja, uma vez que o fornecimento de crédito ou de algum produto/serviço não faz parte do negócio da bandeira, nem mesmo indiretamente, não pode ela ser considerada como parte da cadeira de fornecimento.
Vale destacar que, mesmo na situação da montadora e da concessionária descrita acima, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão na qual entendeu que a concessionária age “por sua conta e sob sua exclusiva e direta responsabilidade”[3], o que descaracteriza a solidariedade. Para o STJ, ainda que a marca do fabricante apareça nos contratos celebrados pela concessionária com o consumidor, não se pode dar ensejo à responsabilização solidária do fabricante pelas práticas comerciais – independentes e não subordinadas – da concessionária. Assim, é possível perceber que, mesmo em situações em que os diversos agentes claramente contribuem para a colocação de um produto comum no mercado, não é possível afirmar que todos podem ser responsabilizados solidariamente.
Entre aqueles que defendem a responsabilidade solidária dos agentes da indústria de cartões de pagamento, há ainda o argumento de que a bandeira deveria ser responsabilizada indiscriminadamente, em razão de auferir lucros oriundos da contratação de cartões de crédito entre os bancos emissores e os consumidores. Porém, tal raciocínio não parece razoável.
Para melhor ilustrar a situação, basta imaginar que uma pessoa venda determinado produto e acorde que o produto será entregue via Sedex, um serviço prestado pelos Correios. Imagine que, ao receber o produto, o comprador verifique que ele apresenta um defeito. Neste caso, deve a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos ser acionada judicialmente? Ainda que os Correios sejam essenciais para viabilizar o negócio do vendedor e que obtenham lucro com a venda dos produtos entregues via Sedex, a empresa não possui qualquer ingerência sobre a atividade do vendedor ou sobre a qualidade de seus produtos. Assim como a bandeira, trata-se apenas de veículo que possibilita o negócio de terceiro, sendo que não faz parte da cadeia de fornecimento.
O contrato que o banco emissor firma com o consumidor envolve diversos serviços que não possuem qualquer relação com a bandeira. Não é a bandeira que oferece crédito ao consumidor, ou então credencia estabelecimentos comerciais. O seu negócio limita-se unicamente a fornecer a tecnologia para que os bancos e as credenciadoras possam trabalhar, estas sim responsáveis pelos serviços/produtos que oferecem a seus clientes.
Como detentora apenas da tecnologia, a bandeira não tem qualquer ingerência sobre a atividade dos bancos ou dos credenciadores. Ou seja, ainda que responsabilizada por eventual dificuldade do portador, ela não será capaz de solucionar o problema. Isto porque a bandeira não pode, ainda que obrigada, emitir ou cancelar faturas, excluir nome do CPC, consertar o terminal POS (“maquininha”), entre outros. Essas funções não fazem parte da sua atividade. Assim, não é possível haver solidariedade entre partes que não conseguem atuar sobre os mesmos problemas e dificuldades.
Deste modo, é importante que tanto os consumidores, quanto os julgadores, tenham em mente quais são os papéis e responsabilidades dos agentes desta indústria. Trata-se de setor bastante específico e de sensível complexidade, que não pode ser generalizado, sem que sejam observadas as suas particularidades. Caso contrário, ter-se-á um sem número de ações judiciais propostas contras partes ilegítimas e extintas sem julgamento do mérito. Tais ações somente contribuirão para a sobrecarga do Poder Judiciário e em nada ajudarão os consumidores na busca por seus direitos.
Depois de explicado quem são os agentes da indústria de cartões de pagamento no Brasil, bem como tendo sido delimitadas as suas responsabilidades, é possível concluir que ainda há um grande número de ações que versam sobre cartões propostas e até mesmo julgadas de maneira equivocada, justamente em razão da falta de conhecimento aprofundado do setor.
As empresas detentoras da bandeira apenas desenvolvem e fornecem a tecnologia que permite que o pagamento seja feito por meio de um cartão. Ou seja, não participam de nenhuma maneira da concessão do crédito ou da administração do cartão, que cabe aos bancos emissores, estes sim responsáveis por eventuais problemas enfrentados pelo consumidor.
Por esta razão, é importante saber até onde é possível aplicar o conceito de cadeia de fornecimento e solidariedade, sob o risco de penalizar indevidamente agentes que não possuem qualquer relação com o consumidor. Isto, além de causar sobrecarga ao Poder Judiciário, pode ser visto como um desincentivo ao desenvolvimento do setor de cartões de pagamento, que vem desempenhando papel fundamental no desenvolvimento da economia.
[1] Secretaria de Direito Econômico, Banco Central do Brasil e Secretaria de Acompanhamento Econômico. Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamentos.
[2] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
[3] Recurso Especial n. 566.735 – PR (2003/0116347-0).

Por Ricardo Casanova Motta
Fonte Consultor Jurídico